"VENHA A NÓS O VOSSO REINO" reflexão sobre os mais recentes escândalos que tem afetado a Igreja Católica Romana.

28-03-2023


Tenho recebido várias mensagens questionando-me o porquê de, no Realpolitik, ainda não ter falado do relatório sobre os abusos sexuais na igreja católica romana.

Afinal, as religiões até são uma das minhas áreas de especialidade e assuntos de interesse, sendo mesmo um dos temas de investigação em que mais investi, embora no passado.

A resposta é simples e clara: porque estava a observar como os diversos intervenientes se iam comportar em relação à questão e aos factos.

E alguns foram lentos, mesmo demasiado lentos.

Outros limitaram-se a ser desastrados, incompetentes, estúpidos (e aqui insira-se a Conferencia Episcopal no seu todo).

Mas vamos por partes:

O problema de que Igreja sofre (e temos que admitir que sofre) começou no dia 13 de Julho de 313, quando Constantino, imperador de Roma, a transforma numa pequena seita de origem judaica (que muitos achavam ainda estar enquadrada nos preceitos do judaísmo), na religião oficial do vastíssimo império romano.

Nesse momento a Igreja Cristã, até aí una, deixou de ser uma seita, uma religião, um fenómeno religioso, um modo de vivência espiritual e de exegese interior e passou a ser uma instituição política, detentora de poderes quase ilimitados, e responsável, em rigor, por sancionar e muitas vezes aplicar as políticas imperiais.

E o sistema funcionou!!!

Afinal deus é uma excelente desculpa seja para o que for e, se há quem conteste homens e se insurja contra as suas políticas e decisões mundanas, é mais difícil o fazer contra um deus impiedoso, vingativo, todo-poderoso e que, na d\dúvida se existe ou não, melhor é respeitar...

A igreja estruturou-se, desta forma, para ser poder e para o exercer e, como o sistema funcionava na perfeição para quem detinha o poder político, assim continuou, mesmo depois da queda do império romano.

Jesus, e as palavras que lhe são atribuídas, deixaram de ser a razão e passaram a ser a justificação.

Tudo era feito em nome dele, embora nada segundo ele.

Em rigor o Cristianismo, não se baseia no que se diz ter sido afirmado por Jesus de Nazaré mas em interpretações e relatos tardios, já também eles, de algum modo truncados, alterados, e, sem dúvida nenhuma, enviesados (há vários relatos da vida de Jesus, os Evangelhos, 4 canónicos, isto é, aceites como rigorosos mas também mais de 100 apócrifos estes não aceites pelas mais diversas razões).

O Cristianismo, em bom rigor, baseiam-se, antes, no escrito nas cartas de Saulo de Tarso (mais conhecido por São Paulo). Numa análise que não precisa de ser muito atenta, concluídos com facilidade que grande parte do código ético-moral e das regras de conduta do cristianismo estão nas 14 epístolas de Paulo e não nos evangelhos mesmo nos canónicos.

E assim a igreja torna-se a base, a sustentação, um instrumento precioso nas mãos de imperadores e Reis até que ela própria, deixa de ser base de poder e passa a ser o próprio poder.

Por volta do século X a igreja assume-se como a autoridade máxima política do ocidente e a quem todos tem de prestar vassalagem.

E assim foi!

E exerceu esse poder de uma forma efetiva, total e impiedosa.

Reis e imperadores eram seus vassalos e tudo o que fazia estava acima de qualquer lei, porque tudo era feito em nome de deus.

De Dom Afonso I de Portugal para ser, de facto, Rei, a Henrique VIII de Inglaterra para se poder separar, tudo, mas tudo, precisava da bênção da Santa Madre Igreja.

Quem obedecia era protegido e até beneficiado na exata medida da sua fidelidade, quem não obedecia era expulso e exposto às mais sanguinárias consequências (no sentido literal da palavra).

Tudo era feito In Nomine Dei, em nome de Deus, até a morte, até os abusos, até a maldade mais sórdida que história já conheceu.

Da inquisição ao extermínio de povos e culturas inteiras, desde a censura sobre tudo até à repressão das minorias e segregação racial, sexual e de todas as outras, a igreja tudo fez, livre e impunemente, ao longo de 1.700 anos.

Prometendo um paraíso celeste a igreja criava um inferno terrestre para os seus seguidores, negando-lhes o gozo da própria vida, os prazeres da existência, a liberdade do ser, para que, sendo está tão má, aspirassem à próxima, cujo "acesso" era controlado, em exclusivo, pela igreja e pelos seus membros.

Não é por acaso que aqui, no meu Norte, diz o povo que "o que é bom ou faz mal ou é pecado". Pelo temor do pecado que conduzia à perdição eterna, a igreja controlou, pelo medo, todo o ocidente, durante séculos.

E o pecado, a sua definição e conceptualização eram (e são) domínio exclusivo da igreja que, conforme a circunstâncias e o que, no momento, lhe é benéfico, vai alterando sem qualquer lógica ou coerência.

O perdão desses mesmos pecados também era (e é) prerrogativa exclusiva da mesma Igreja que, assim controlava (e controla) todo o processo.

Jesus, esse, preso a uma cruz, continuava a ser a desculpa, e a sancionar tudo que sempre e cada vez mais tinha um objetivo: a manutenção e consolidação do poder da instituição.

Houve, de facto, alguns sinais de mudança, como o concílio ecuménico Vaticano II, em que se apelava (e só apelava) à renovação ou então, a encíclica Rerum Novarum (em português, literalmente: a mudança da coisa), do Papa Leão XIII, publicada em 1891 e que poderia ter sido o início de uma renovação total da igreja católica.

E essa renovação passaria por deixar de ser uma instituição política e de poder para passar a ser uma instituição religiosa, baseada na fé e vocacionada para todos aqueles que buscam orientação e conforto espiritual.

Mas nada se passou.

Afinal, são "vícios" com 1.700 anos e é muito difícil abrir mão do controlo e do poder quando se o tem.

Assim, a Igreja Católica, não só não se alterou como se tentou consolidar perante uma sociedade que começava a mudar em meados do século XIX, como prova o dogma da infantilidade papal de 1871.

A igreja assume-se com tanto poder que decreta que o seu líder, porque inspirado por Deus (sempre a melhor desculpa) não falha.

A igreja exclui a possibilidade de erro de si mesma, logo exclui a possibilidade de culpa, porque quem não erra, não falha e quem não falha, não peca.

E, desta forma, esta instituição atrai às suas fileiras quem?

Homens de fé e paz, por certo, mas também, como é óbvio, todo o tipo de ambiciosos, tiranos, abusadores e ditadores e, como agravante, dos medíocres, porque não o fizeram por eles próprios e por seu mérito, mas antes escudados numa instituição onde até o mais incapaz é dotado do poder quase absoluto de toda a instituição.

Nisso a Mater Ecclesiæ é, de facto, igualitária: do Pontífice Máximo, ao mais simples sacerdote, se consagrado, todos tem direito aos instrumentos da tirania. Compete, depois, a cada um, decidir se os utiliza e como os utiliza.

Afinal, qual o melhor lugar para exercer o poder senão onde está o poder, e esse poder já está estabelecido, implementado, é incontestável, é isento de erros e qualquer culpa?

Qual o melhor lugar para cometer o crime, a perversidade, o abuso, a violação senão onde não há castigo, não há culpa, não há condenação, mas sim silêncio, aceitação e encobrimento?

E, desta forma, se forma a igreja.

Os abusos que agora conhecemos são sabidos há décadas (mesmo séculos) por todos.

Mas há outros, muitos outros, não podemos esquecer, que vão para além dos abusos sexuais.

Estes, com que agora nos deparamos, chocam pelo dano que causam às suas indefesas vitimas, mas, chegará o tempo que também serão conhecidos os abusos sobre a idiossincrasia das culturas, sociedades e indivíduos, sobre o pensamento e a ciência, a criatividade e tantas, tantas coisas que a igreja católica impediu, intrigou, negou, castrou.

Embora no concílio Vaticano II haja o apelo à mudança a esmagadora maioria do clero atual, em especial quem constitui o topo da sua hierarquia e mesmo as suas bases, foram formados antes do concílio (que decorreu entre 1962 e 1965), logo quando nem havia apelo à mudança, muito antes pelo contrário.

Não nos podemos esquecer que o Clero, na sua esmagadora maioria, se opôs à realização do concilio e que este só aconteceu porque João XXIII, como Papa era... infalível!

Estes clérigos eram formados na mentalidade que podiam tudo, eram tudo, representavam o poder absoluto e incontestado e que, a eles, tudo era permitido e tudo era desculpado e perdoado (porque eram os próprios que se perdoavam entre si). E não lhes era só dito como eles próprios viam, no dia a dia, que assim era, que assim acontecia.

Os atuais clérigos, embora formados já depois do concílio foram e estão a ser formados pelos antigos que não estão interessados em alterar o status quo, muito antes pelo contrário.

Vendo-se a perder o poder, a influencia, a domínio, a Igreja, em notório desespero, torna-se mais defensiva, radical, extrema, como são prova disso tantas posições, movimento e mesmo ordens religiosas, que surgem para defender esse mesmo poder agora ameaçado por uma sociedade mais livre, democrática, culta e racional.

É assim e irá continuar assim pois desde o simples sacerdote de aldeia ao infalível Sumo Pontifície Romano, mesmo perante uma sociedade em profunda mutação e mesmo metamorfose, tudo era feito, tudo era concebido para manter a ordem, o domínio, o poder.

Daí os encobrimentos, daí as negações, daí as aceitações.

A igreja, fechada dentro das impenetráveis muralhas do Vaticano acha-se ainda, acima de qualquer poder e de qualquer lei e os seus membros partilham essa sensação.

Por isso não é de estranhar os abusos sexuais, mas também não é de estranhar a participação em negócios muito condenáveis, em repressões completamente censuráveis e o apoio a regimes déspotas e tirânicos.

E isso não foi no passado.

É agora.

Pensem bem e façam uma retrospetiva na histórica contemporânea: houve algum regime totalitário que, concordando em respeitar e submeter-se à igreja, não tivesse dela apoio?

Do Estado Novo ao franquismo, de Pinochet a mesmo Hitler a Igreja sempre esteve do lado do poder que apoiava o seu poder.

Por isso é tão difícil, perante a exposição destes casos, à igreja, assumir a culpa, sequer pedir desculpas pelo que fez.

Por isso bispos e prelados se multiplicam em meias desculpas e justificações ridículas e absurdas em vez de fazer a única coisa que podiam fazer: assumir totalmente a culpa e as suas consequências.

Afinal…. Eles não erram…. Eles não sabem o que é culpa…

A igreja será obrigada, por todo o contexto social e cultural, a passar por uma profunda remodelação, transformação e mutação.

Já ninguém tem medo das chamas do inferno, as pessoas agora pensam e questionam, são cultas e já não admitem indivíduos infalíveis em nome de deus.

A igreja terá de recuar quase 2.000 anos e ser, finalmente, o que nunca foi e que o seu fundador pensou que seria: uma instituição de paz e concórdia, o apoio dos fracos e desprotegidos, um lugar de orientação e conforto espiritual, o refúgio dos "pecadores" e não o domínio dos "Santos".

A custo, a muito custo, em especial para a sua pesada hierarquia, terá de abdicar do poder, da influência, do autoritarismo, terá que entender que já não é impune, já não é infalível.

Terá que entender que é preferir ter poucos, mas bons, do que ter muitos e correr o grave e comprovado risco de atrair todo o tipo de abusadores, tiranos e descompensados.

Fui criado como católico.

Durante toda a minha vida, desde o Infantário até à universidade, fui educado em instituições católicas.

Encontrei homens extraordinários que ainda hoje, para mim, são exemplo de sabedoria, virtude e exemplo. Vi homens movidos por verdadeira fé, caridade e amor. Mas também vi déspotas mesquinhos e abusadores da pior espécie.

Como em todo o lado há de tudo.

É normal e natural.

Mas quando é detetado o mal ou maus elementos é obrigação, em especial de quem diz basear a sua conduta na justiça, no amor, na caridade, expor, denunciar, punir.

E foi precisamente isso que a igreja não fez!

Enquanto instituição a igreja comete duas grandes faltas na minha opinião: a do encobrimento do passado e da cobardia do presente.

Se o abuso é uma falta do indivíduo (porque o é) o encobrimento é a falta da instituição.

E ela fê-lo durante séculos.

É essa culpa e as suas totais e absolutas consequências que a igreja católica tem, sem margem para dúvidas e dualidades, assumir e reconhecer.

Não há outra hipótese digna para a Igreja senão esta.

Porque, também como diz o povo, tanto é culpado o que faz como o que deixa fazer.

E fez-se muito, mesmo muito!

No entanto temo que tudo isto seja, tão somente, a "ponta do icebergue" pois se um dia, porventura, investigarem o que se passa nas IPSS e ONGs controladas pela Igreja, assim como pelos estabelecimentos de ensino, ordens, organizações, instituições, etc. o que descobrirão, acho, não será muito melhor do que agora descobriram.

Qual será o futuro da igreja?

Não sei!

Terá, por força, de haver uma transformação!

Quero acreditar que se transformará numa instituição em que as palavras de Jesus serão a base e não a desculpa, que a caridade será regra e não a exceção, que o amor será a prática e não a propaganda, em que fé será a causa e não a consequência, uma igreja de pecadores que se amam fraternalmente e que, juntos e humildes, procuram a evolução.

Mas para isso é preciso que a igreja se assuma, perca o medo, se desapegue do poder, que aceite que assim não é mais possível.

Há indicadoras (lentos, muito lentos como sempre na igreja) que tal pode acontecer. A eleição do reformador e jesuíta Jorge Bergoglio, como Sumo Pontífice pode ser já um sinal dessa reforma…. Ou não…

Afinal…. O futuro…. A Deus pertence.