UMA REVISÃO DA CONSTITUIÇÃO PARA OS TEMPOS NOVOS

Há momentos na vida de uma nação que exigem mais do que gestão ou administração.
Exigem visão. Exigem coragem!
E, acima de tudo, exigem responsabilidade democrática.
Um desses momentos, sem dúvida, é o da revisão da Constituição.
Não há muitos atos políticos mais importantes — e mais exigentes — do que este. E não é por acaso.
A Constituição é a espinha dorsal do nosso ordenamento jurídico. É o chão firme onde assenta a nossa vida coletiva, os nossos direitos, os nossos deveres, as nossas instituições.
Rever a Constituição não é um capricho.
É, ou deve ser, um exercício sério, ponderado, quase solene, de actualização daquilo que consideramos essencial para a convivência num país livre e democrático.
Infelizmente, ao longo dos anos, temo que tenhamos começado a olhar para a Constituição com uma espécie de reverência excessiva, quase supersticiosa. Como se a sua letra fosse sagrada. Como se os seus artigos fossem dogmas.
E isso é perigoso!
Uma Constituição que não se revê, que não se questiona, que não se adapta, não é um farol — é uma âncora.
Por isso, importa saudar com clareza e sem hesitações a proposta apresentada pelo CHEGA e pela Iniciativa Liberal para desencadear um processo de revisão constitucional.
Concorde-se ou não com as suas motivações ou propostas concretas, é inegável que estão a agir dentro do seu mandato e a responder a um sinal evidente da sociedade portuguesa: o tempo não parou em 1976.
Pelo contrário.
O tempo correu, e corre depressa.
Portugal já não é o país saído do PREC, ainda a tentar definir os contornos da sua jovem democracia.
Somos hoje um país diferente — mais maduro, mais complexo, mais global, mais digital, mais exigente.
As transformações que vivemos nas últimas décadas não podem continuar a ser ignoradas pela lei fundamental.
Não se trata de apagar o passado, mas de reconhecer que o presente impõe outras perguntas e, por isso, outras respostas.
A última revisão constitucional aconteceu há vinte anos.
Foi uma reforma tímida, limitada, mais cosmética do que estrutural. Tocou em aspectos pontuais, como os referendos, mas não ousou enfrentar as grandes questões que moldam o futuro do país.
E a verdade é que há muito a fazer. A começar por uma clarificação de competências entre órgãos de soberania, passando pela modernização do sistema político, pela redefinição do papel do Estado na economia, pelo sistema eleitoral completamente caduco e disfuncional (em que partidos com 0,4% dos votos elegem deputados e outros com 1,5% não) pela introdução de novos direitos fundamentais ligados à era digital, até à incorporação efectiva dos desafios ecológicos e demográficos.
Se há altura em que a Constituição deve ser revista, é esta.
Porque é agora que sentimos o descompasso entre o texto constitucional e a realidade que vivemos. Não é possível continuar a tratar como tabu aquilo que devia ser natural numa democracia: a revisão regular da sua lei maior.
Uma Constituição viva não é aquela que se mantém intacta. É aquela que evolui. Que cresce com o país. Que se molda às novas exigências. Que escuta o tempo em que está inserida.
Não se trata, obviamente, de reescrever tudo.
Há princípios que devem permanecer como estão: o Estado de direito, os direitos humanos, a soberania popular, a separação de poderes, a autonomia do poder judicial.
Mas esses princípios são a base — não podem ser a prisão.
A Constituição não existe para nos engessar.
Existe para nos orientar.
Existe para garantir que a mudança é feita dentro de um quadro de justiça, de equilíbrio, de respeito pelos valores fundamentais. O seu papel é enquadrar, não impedir. Amparar, não travar.
É, por isso, tão importante que este debate seja feito com elevação, com espírito democrático e com sentido de missão.
Não pode ser mais uma arena de guerrilha partidária.
Não pode ser tratado como mais um episódio da novela política nacional.
E aqui entra a responsabilidade dos partidos fundadores: Do Partido Socialista e do Partido Social Democrata.
São eles que, pela sua dimensão e história, podem dar legitimidade e estabilidade a um processo que não pode ser nem apressado nem bloqueado por birras.
Está nas mãos destes partidos demonstrar que são, de facto, partidos de Estado. Que sabem colocar o interesse do país acima de jogos táticos. Que compreendem que há alturas em que o silêncio, a hesitação ou a obstrução são, na prática, formas de abdicação.
Não se trata de subscrever as propostas do CHEGA ou da Iniciativa Liberal sem pestanejar.
Trata-se de reconhecer que estas propostas abrem uma janela de oportunidade.
E que é obrigação de quem governa — ou aspira a governar — estar à altura dessa oportunidade.
As revisões constitucionais não se fazem todos os dias. E talvez por isso mesmo, quando se fazem, devem ser feitas com ambição. Com profundidade. Com abertura. Com sentido histórico.
É preciso voltar a pensar a Constituição como um pacto vivo. Um pacto entre gerações. Entre o passado que nos trouxe até aqui e o futuro que ainda não conhecemos, mas que já se anuncia nos ventos da mudança tecnológica, climática, económica e cultural.
As novas gerações têm o direito de sentir que a Constituição também lhes pertence. Que fala dos seus problemas. Que protege os seus direitos. Que reconhece os seus desafios.
Não podemos continuar a apresentar-lhes um texto que cheira a mofo institucional. Que fala mais do que fomos do que daquilo que somos — ou queremos ser.
E a verdade é que o texto de 1976 (depois sofreu 7 pequenas revisões a esmagadora maioria para se adequar a imperativos legais emanados da União Europeia), mesmo com as sucessivas revisões, carrega uma carga histórica muito específica.
Nasceu num contexto de transição revolucionária. Respondeu a medos concretos, a tensões específicas, a equilíbrios precários.
Mas hoje já não estamos aí. Hoje, os riscos são outros. A ameaça já não é o regresso da ditadura militar. É o populismo. É a desinformação. É o esvaziamento da confiança nas instituições. É a desagregação do tecido social. É a polarização. É a indiferença cívica.
Perante estes desafios, precisamos de uma Constituição que responda. Que proteja. Que una. Que inspire. Que reforce a democracia, em vez de a cristalizar.
A revisão constitucional que agora se propõe tem de ser o ponto de partida para uma nova etapa da nossa vida coletiva. Uma etapa marcada por mais maturidade democrática, por maior exigência ética, por uma cidadania mais ativa.
Será difícil? Claro que sim.
Exigirá negociações, cedências, debates acalorados. Mas o que está em causa vale o esforço. Vale o incómodo. Vale o desgaste.
Porque uma democracia sem coragem não dura. E uma Constituição que não se adapta, morre por dentro.
É tempo de deixar o medo de lado. De abandonar a ideia de que mexer na Constituição é uma forma de traição.
É tempo de compreender que, em democracia, rever é um sinal de vitalidade, não de fraqueza.
E é tempo, sobretudo, de acreditar que podemos fazer melhor.
Que podemos ter uma Constituição que seja nossa, não apenas por herança, mas por escolha. Por convicção.
Talvez este processo não mude tudo de uma vez. Talvez seja mais uma etapa.
Mas que seja, ao menos, um começo. Um gesto político que mostre que ainda levamos a sério a democracia, a liberdade, o futuro.
Porque, no fim de contas, é disso que se trata: de futuro.
E o futuro não espera por Constituições adormecidas.
Que o Parlamento esteja à altura do que o país espera.
Que os deputados ouçam o tempo. Que o façam com coragem, com responsabilidade, com grandeza.
Não por um partido.
Não por uma agenda.
Mas por Portugal.