UCRÂNIA: ENTENDER O CONFLITO

10-04-2024


Muito se tem escrito, falado, comentado, ao longo de 2 anos, sobre a guerra na Ucrânia.

Mas, acho que, como sempre na geopolítica, para entendermos os factos, temos de entender o seu contexto e conhecer a história e as razões porque, quase sempre, os acontecimentos de hoje encontram as suas origens em acontecimentos com décadas, mesmo de séculos.

Por isso, vamos, hoje, entender essa realidade complexa chamada de Ucrânia e como a sua natureza e o seu passado a conduziram a este presente e como condicionarão o seu futuro.

A Ucrânia é imensa e diversa. E é precisamente essa diversidade que caracteriza a Ucrânia.

De facto, do ponto de vista cultural e social, não há uma Ucrânia: há 3.

A Ucrânia ocidental, a Ucrânia eslava e a Ucrânia russa.

A Ucrânia ocidental corresponde à parte ocidental do país. Tem a sua capital em Odessa e, há séculos, tem uma enorme influência ocidental, dos países com que faz fronteira como a Hungria (durante muito tempo Império Austro-húngaro, logo de influência Austríaca), a Chéquia e a Polónia. Todos estes países e as suas capitais (Viena, Budapeste, Praga, Varsóvia) foram centros culturais e civilizacionais especialmente desde o século XVII e a parte ocidental da Ucrânia "absorveu" toda esta cultura, toda esta civilização. 

Odessa foi um centro cultural durante os séculos XVIII e XIX onde as elites intelectuais, económicas e políticas dos países vizinhos iam passar as suas férias de verão.

Nos teatros, salões de baile e luxuosos hotéis de Odessa dançava-se valsas de Strauss e ouviam-se operas de Verdi.

Também era um ponto de união entre o este e o oeste, por isso, durante os séculos XVIII e XIX foi uma das "capitais" mundiais da espionagem.

Como bem se denota (ou denotava antes da guerra) eram um centro de glamour, elegância e sofisticação muito retratada na sua elegantíssima arquitetura.

Esta é a Ucrânia Europeia e, de facto, "essa Ucrânia" tinha todo o nexo pertencer à União Europeia e mesmo à OTAN/NATO.

Depois há a Ucrânia eslava, com capital em Kiev. 

Essa Ucrânia, também conhecida como Rússia de Kyiv, existe desde o século IX e tem as suas raízes culturais nos cossacos e em várias tribos polacas.

O período áureo da Rússia de Kyiv teve início sob o governo de Vladimir, o Grande (980-1015), que orientou o Estado eslavo rumo ao cristianismo bizantino. Sob o reinado de seu filho, Yaroslav, o Sábio (1019–1054), Kiev alcançou seu apogeu em termos de desenvolvimento cultural e poder militar. Foi precisamente a esse poderio militar que garantiu que fosse "esta Ucrânia" a prevalecer sobre as outras duas e que acabou por se tornar, no século XX, o polo centralizador e polizador dessa "não existência" a que nos habitamos a chamar de Ucrânia.

A imagem que é "projetada" para o ocidente da Ucrânia é da Ucrânia eslava pois, convenhamos, é a que de facto é mais idiossincrática, diferenciada e caracterizada em detrimento das outras zonas que são mais caracterizadas pelas suas culturas de influencia.

A "terceira" Ucrânia" é a "Ucrânia Russa".

Tem a sua capital em Kharkiv (embora Sebastopol também tenha uma enorme importância) e teve o seu início no século XVII quando, Pedro, o Grande, Czar da Rússia, no seu esforço de modernizar o país viu a necessidade formar uma marinha, tanto de guerra como mercantil no sul e não somente no norte (pois os portos do norte não eram rentáveis devido a estarem inativos no inverno e ficarem muito distantes das principais rotas comerciais).

Assim Pedro invadiu as zonas de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia para além da península da Crimeia, controlando o Mar Azof, onde fundeou a sua novíssima armada e, com o acesso ao Mar Negro, ao estreito do Bósforo e, consequentemente ao Mediterrâneo, daí começou a expansão do comércio russo, tanto em termos de importação como de exportações (as primeiras dignas desse nome na história Russa).

Catarina II reforçou a presença russa nessa zona até ser formalmente anexada ao Império Russo em 1783, sendo mais um formalismo do que, de facto, uma "tomada".

E esta região foi parte do Império Russo, depois Soviético, até 1954, quando Nikita Khrushchev, muito devido ao "degelo estalinista", passou a sua administração formal para a Republica Socialista Soviética da Ucrânia, de modo a mostrar a sua visão mais "democrática" da União Soviética e também para recompensar o Ucranianos do Holonodor que foi assumido, precisamente, por Khrushchev, no famoso "discurso secreto" que encerrou o 20º congresso do Partido Comunista Soviético, em 26 de fevereiro de 1956, em que o sucessor de Estaline, expôs, aos atónitos membros do partido, os horrores do seu antecessor.

Acabou destituído e "purgado" pelos seus amados camaradas sendo o único secretário-geral do PSUS que teve este destino.

Mas, mesmo assim, esta transição de poder foi meramente formal e de "relações-públicas" porque, de facto, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, tudo dependia de Moscovo e só de Moscovo.

O povo desta "Ucrânia", naturalmente, é de esmagadora maioria russa, fala russo, pensa russo... é russa!

E assim tudo decorreu de forma ordeira até à queda do "Império Soviético".

Naqueles dias agitados de 1992 houve, imediatamente, 2 preocupações tanto da Rússia, como da Ucrânia como de toda a comunidade Internacional: qual seria o destino de todo o arsenal nuclear estacionado na Ucrânia (e em mais algumas ex-repúblicas soviéticas) e qual seria também o fim a dar à imensa e super-poderosa "frota do Mar Negro", uma das maiores e mais temidas armadas de guerra do mundo, também ela dotada de capacidade nuclear (em especial na frota de submarinos estratégicos).

Depois de longas conversações, em 1994 chegou-se a um acordo entre a Bielorrússia, o Cazaquistão, a Ucrânia, a Rússia, os Estados Unidos, o Reino Unido (por si e em representação da Commonwealth), a França e a China. O acordo ficou conhecido por "Memorando de Budapeste".

Este documento declarava que o arsenal nuclear "espalhado" pelas ex-repúblicas soviéticas seria deslocado para a Federação Russa (afinal, o objetivo era diminuir e não aumentar as "potencias nucleares") e que a Federação Russa poderia manter as suas bases navais na Crimeia e no Mar Azov.

Também as partes comprometiam-se em que esses novos Estados se manteriam como "neutrais" (ficaram conhecidos por "Estados tampão") de modo a que nem a Rússia se sentisse ameaçada pela OTAN/NATO nem a Europa Ocidental pela imensa e poderosa Federação Russa.

Os grandes "obreiros" deste tratado (Clinton pelos EUA, Major pelo Reino Unido e Yeltsin pela Federação Russa) tinham um objetivo e somente um objetivo: estabilizar a zona e criar as condições para o desarmamento nuclear e o fim definitivo das tensões este-oeste e da guerra fria.

Sonhava-se com uma Europa pacifica e prospera, uma superpotência colossal que se estenderia do Corvo em Portugal a Diomedes Maior na Rússia (curiosamente duas ilhas muito pequenas, a primeira no meio do Oceano Atlântico, a segunda no estreito de Bering no Pacifico.)

Nada nem ninguém poderia fazer frente a este colosso geopolítico e geoestratégico e seria a reconfiguração total da ordem mundial, remetendo os Estados Unidos e a China para "pequenas potencias" tanto do ponto de vista económico como militar.

Lembro-me que, na altura Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Mikhail Gorbatchov, isto é, os "monstros sagrados" do fim da guerra fria emitiram, cada um, um comunicado, no mesmo dia, à mesma hora a felicitar o memorando. O Papa João Paulo II também "abençoou" o acordo.

E assim ficou resolvida a questão ucraniana.

Mas a Ucrânia mergulhou numa crise crónica de corrupção, má gestão, falta de crescimento económico, desvalorização da moeda, e uma incapacidade para assegurar o financiamento de mercados públicos. A Ucrânia era vista, unanimemente, como um Estado falhado, completamente controlado pelo crime organizado, tendo mesmo assumido o estatuto de "capital mundial" do crime organizado.

Não é por caso que o "gueto" onde se estabeleceu a "Máfia Russa" nos Estados Unidos, em Brighton Beach, Brooklyn, Nova Iorque, não recebeu o nome de Little Moscow ou Little Sanperterburg, mas sim de Little Odessa.

O estado de decadência e rotura da Ucrânia era tão grande na primeira década do século XXI que o fantástico jornalista Oliver Bullough, no seu extraordinário livro "O País do Dinheiro" teve a necessidade de criar um novo termo para classificar o regime politico em vigor na Ucrânia. O termo que Oliver Bullough encontrou foi de "Cleptocracia", isto é, o Poder dos Ladrões (Clepto, do grego, roubo, Cracia, também do grego, Poder).

Também a realidade desses tempos é primorosamente descrita no filme de Andrew Niccol, "O Senhor da Guerra", de 2005, com uma genial interpretação do grande Nicolas Cage.

Tudo isto durou até 2014 e à que ficou conhecida como "Revolução da Praça Maidan".

Esta revolução teve origem na promessa do candidatado presidencial Viktor Yanukovych ter feito campanha baseado na promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia para resolver a profunda crise económica.

Foi eleito.

Mas no momento em que foi eleito o Presidente Putin fez-lhe chegar uma mensagem a dizer que a adesão da Ucrânia à União Europeia era uma violação da neutralidade do país e logo do memorando de Budapeste e que a Federação Russa atuaria em conformidade.

Yanukovych recuou nas pretensões europeias e a população de Kiev (o resto da Ucrânia, mesmo a zona ocidental não se envolveram) revoltou-se violentamente ocupando o centro da capital.

As autoridades responderam ao "estilo soviético" resultando em 121 mortos e em 1372 feridos de ambas as partes do conflito.

O presidente ucraniano fugiu, o governo foi derrubado e o poder caiu nas ruas.

A Federação Russa, com o pretexto de assegurar os seus interesses na região, invadiu a Crimeia quase sem oposição e resistência.

O Ocidente apresentou protestos formais mas, convenhamos, ficou mais descansado em ter uma zona de enormíssima relevância geoestratégica como é a Crimeia e a poderosa (e nuclear) "Frota do Mar Negro" nas mãos da Rússia do que em forças populares revoltosas que ninguém sabia, muito bem, o que iam fazer.

E nesta situação "morna" esteve-se até 2019 em que, mais uma vez, um candidato presidencial, Volodymyr Zelensky, com uma brilhante carreira como ator cómico em séries televisivas, faz campanha em que defende não só a adesão da Ucrânia à União Europeia como também à OTAN/NATO.

Foi eleito.

Em termos de geopolítica tanto a Rússia como a OTAN/NATO deviam ter "esvaziado" a questão, remetendo-se ao silêncio e mantendo a neutralidade da Ucraniana e o seu estatuto de "Estado tampão".

E só não foi assim porque Joe Biden, que concorria contra Donald Trump nas eleições Presidenciais Americanas de 2020 precisava, desesperadamente, de uma causa em termos de política externa suficientemente fraturante para conquistar eleitorado de direita.

E que causa mais fraturante pode haver nos Estados Unidos que "ressuscitar" o "monstro russo"?

E assim Joe Biden fez bandeira de campanha a integração da Ucrânia na OTAN/NATO e, assim, infligir uma "derrota" nos "soviéticos" (o homem já não é novo e tem assim uns lapsos de memória).

Putin não reagiu bem.

Começou por ameaças diplomáticas: foi enfrentado pela Ucrânia e pelos Estados Unidos; passou a exercícios militares na fronteira com a Ucrânia: foi desvalorizado pela OTAN/NATO e, por fim, Putin fez a pior asneira da sua carreira: Invadiu a Ucrânia sendo, o resto, o que já sabemos.

O que devia ter feito Putin?

Ter "ignorado" a questão e feito lobby junto dos seus aliados ocidentais.

Com alguma pressão junto da Alemanha (dependente do gás russo), utilizando a Argélia para influenciar a França (dependente do gás argelino), mais os "aliados naturais" de Moscovo como a Hungria e a Turquia e com algumas ações de charme, facilmente Putin deixaria duas nulidades políticas como Biden e Zelensky a falarem sozinhos e não chegarem a lado nenhum.

Mas Putin reagiu emocionalmente, talvez pela primeira vez na sua vida, e cometeu um "erro de palmatória" em geopolítica: tomar uma ação quando não é imperioso fazê-lo.

Afinal, a geopolítica, nas palavras do meu grande amigo e mestre Frank Liebiech, "é a arte de estar absolutamente quieto transmitindo para o público a sensação (e nunca mais do isso) de que se está a fazer alguma coisa de facto importante".

Nada é pior em política do que fazer algo.

A política é o ambiente em que a inércia é uma virtude e se acredita que o mundo move-se sozinho (e de facto move-se) e que as coisas pequenas não vale a pena o esforço de as resolver e que as questões importantes são tão complexas que, faça o que se fizer, o resultado será sempre o mesmo, por isso não vale a pena também fazer nada.

Só se tem que mostrar, ao público alguma azafama, alguma preocupação, alguma ação, das 13 às 20 (horário dos principais telejornais) e depois ir beber um Dry Martini, no Dukes, claro, em St. James Street.

Foi uma pena que Vladimir Putin nunca tivesse frequentado as primorosas aulas de "Prática Política" de Whitehall (embora, por certo, tenha os manuais).

Se tivesse ido às aulas ou lido os manuais teria aprendido as 4 regras de gestão estratégica da política externa do Governo de Sua Majestade e que resulta SEMPRE.

Dizem os manuais que perante qualquer situação em política, em especial política externa, devemos, consequentemente, seguir 4 fases, avançando progressivamente conforme o necessário. São essas regras.

Primeira fase: Afirmar que nada vai acontecer;

(se, de facto acontecer...)

Segunda fase: Afirmar que talvez aconteça alguma coisa mas que não se deve fazer nada;

(se acontecer e houver danos conhecidos pelo publico porque se o público não souber considera-se resolvido)

Terceira fase: Dizer que talvez se devesse fazer alguma coisa mas não há nada que se possa ser feito;

(se a situação ficar mesmo má...)

Quarta fase: Afirmar que talvez tivéssemos de ter feito alguma coisa mas que agora é demasiado tarde.

Escrevem-se uns discursos de condenação e pesar, encomenda-se um monumento, põe-se umas flores no monumento: assunto encerrado.

Como se aprende em Whitehall com estas regras resolvem-se 99% das questões em geopolítica.

O restante 1% é quando, de facto, não podemos mesmo fazer nada.

Mas a guerra começou há 2 anos.

E é em incrível, como em 2 anos, no contexto da política atual repleta de organizações, comunidades, tratados e pactos ainda não houve ninguém capaz de resolver a situação e de ter chegado à conclusão que este é um conflito que só se resolve pela negociação, porque em termos militares só um ignorante não entende que, tanto um lado como o outro, não capitulará.

Mas isso será assunto para um próximo Realpolitik muito em breve.

Agora importa, tão somente, entender as origens e as causas do conflito, para que conhecendo as causas e estando conscientes das consequências possamos em definitivo, trabalhar para o único fim de tudo isto: a paz.


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