TURQUIA: o regresso fantasioso do grande império

30-05-2023

Erdoğan venceu.

Naturalmente.

A Realpolitik impôs uma das suas regras de sempre: na dúvida não se muda.

E havia mesmo muitas dúvidas. Mesmo muitas!

A oposição, encabeçada por Kemal Kiliçdaroglu, era um conjunto dispare de forças e contra forças que só tinham um ponto em comum: tirar Erdoğan do poder.

E se isso poderia ser mais do que bastante para vencer umas eleições (e quase que foi), dificilmente geraria uma governação estável, coesa e pacífica. Seria utópico um governo em que extrema-esquerda, cristãos, curdos, moderados laicos, entre outros (eram mais de 6 as forças políticas que constituíam a coligação), no dia-a-dia da governação, chegassem aos consensos profundos que a Turquia necessita para sair da profunda crise em que se encontra.

Esta é uma daquelas situações que, em geopolítica, ficamos sem saber o que pensar: é preferível uma ditadura estável ou uma democracia caótica?

O povo preferiu a "ditadura" estável, ou "democracia musculosa", como lhe queiram chamar.

Mas sendo a vitória do "Grão-Vizir" um facto e até a oposição reconhecendo a derrota, importa, agora, olhar para o futuro.

Num primeiro momento e numa análise superficial pode-se pensar que, se mantendo o status quo, tudo continua na mesma e quase nada ou mesmo nada muda.

Mas, infelizmente, temo que não vá ser assim, muito antes pelo contrário.

A vitória de Erdoğan tem várias e profundas consequências.

A primeira é o fim total e absoluto de qualquer coisa que se assemelhe a uma oposição na Turquia.

No próprio dia das eleições, embora o candidato derrotado prometesse a continuidade do movimento de oposição uno e coeso à "ditadura", os membros da derrotada coligação já trocavam acusações e responsabilidades.

A Turquia não tem, nem terá, num futuro próximo, uma oposição digna desse nome.

Voltará a ser cada um por si, a travar lutas singulares, desconexas e inconsequentes, que, por muito justas e meritórias que sejam (e algumas são), pecam pelo amadorismo, pelo populismo e pela desorganização perante uma "máquina" altamente eficiente, treinada e coesa como é o regime que ocupa, há 20 anos, o poder.

Por exemplo, grupos radicais, como o PKK, que até se tinham contido um pouco em todo este processo, numa esperança longínqua de chegar ao poder pelas urnas e não pelas bombas, terá, agora que "dar a mão à palmatória" aos mais radicais, aos mais extremistas e voltar à "luta armada", isto é, ao terrorismo.

Uma nova vaga de ataques do PKK nos principais centros turcos (Istambul, Ancara e Antália) e nos principais centros do poder decisório ocidental como Genebra e Bruxelas são agora muito previsíveis.

Tal facto (entre outros), a luta contra a violência, o radicalismo e o terrorismo, irá tornar ainda mais fácil que Erdoğan consolide o seu poder, consolide o sistema presidencialista, o seu autoritarismo e que "formate" toda a máquina do Estado para, mesmo depois de sair (prometeu que seria o seu último mandato) continue a governar ou muito próximo disso.

Com o poder assim consolidado, com o MIT - Millî İstihbarat Teşkilatı (serviços secretos turcos) como guarda pretoriana e com as Forças Armadas completamente controladas e leais, o Presidente Turco será uma figura incontornável na geopolítica e geoestratégia mundial nos próximos longos tempos, muito em especial enquanto o conflito entre a Rússia e a Ucrânia continuar.

Nada se poderá decidir sem Erdoğan, nada se poderá fazer sem o acordo de Erdoğan.

E a Turquia, naturalmente, assume uma posição que pode, a todo o momento, condicionar todos os equilíbrios geoestratégicos mundiais.

O acesso ao canal do Suez, ao estreito do Bósforo e a todo o mar Egeu, logo, o acesso tanto às rotas Indo-Pacificas (pelo Suez), como Atlânticas (pelo Mediterrâneo e depois por Gibraltar), a regular navegabilidade no Mediterrâneo, para além de ser a ligação incontornável entre o ocidente e oriente e, consequentemente, de fornecimento de matérias primas que vão desde o petróleo aos têxteis, desde tecnologia até alimentos, a Turquia pode condicionar tudo isto.

Desta forma, em questões de Realpolitik, o melhor é deixar antipatias e oposições de parte e começar a construir alianças e consensos com Erdoğan. Não é o ideal, não é o que esperávamos, mas é o que temos.

Pois tudo o que NÃO precisamos e queremos, atualmente, é de outro fator desestabilizador nos mercados e na política internacional.

E é isso, e ainda bem, que está a acontecer: não são todos os políticos que se podem gabar de, ainda sem os resultados confirmados legalmente, serem felicitados pela vitória, quase em simultâneo, por Vladimir Putin, Volodymyr Zelensky, Joe Biden, Xi Jinping e Rishi Sunak.

Já houve quem ganhasse o Nobel da Paz por muito menos!!!!

Outra questão que queria abordar é a perspetiva interna.

Como muitos sabem estive, recentemente (em Março), na Turquia, na região de Adana, na cidade de Iskenderun. Foi uma das regiões mais afetadas pelo sismo de 6 de fevereiro de 2023.

Tive contacto próximo com as autoridades locais que estavam tão, mas tão convencidas da derrota de Erdoğan que extremaram posições, idealizaram ações e políticas de recuperação e reconstrução numa "era pós-Erdoğan", toda uma idealização fantasiosa que ontem ruiu com ruíram os edifícios do sismo.

E, como sabemos (e o presidente turco várias vezes provou), atitudes de oposição frontal não são toleradas nem permitidas.

Haverá, por certo (não de imediato, mas progressivamente), um "saneamento", uma "limpeza" da oposição mais empenhada, mais dinâmica e mais capaz, essa oposição que eu vi, enérgica e fulgurante a construir um futuro que nunca existirá.

Temo pelo futuro e mesmo pelo bem-estar de muitos amigos que fiz na Turquia e imagino a sua incredulidade perante os resultados eleitorais de domingo.

Todos aqueles planos, todos aqueles acordos de cooperação, todas as ações de intervenção humanitária passaram a ser, de um dia para o outro, uma miragem desvanecida e um risco imenso para quem neles insistir e teimar.

Na Realpolitik o medo vence sempre a esperança, a certeza do pouco prevalece sobre a esperança do muito, a desgraça conhecida submete sempre uma felicidade incerta.

E, fundamental e infelizmente, e como já afirmei, a razão da força vence, salvo raríssimas excepções, a força da razão.

Foi isso que aconteceu na Turquia.

Quem deu a vitória a Erdoğan não foi o académico laico e moderno de Istambul nem a mulher emancipada de Negócios de Ancara. É relativamente fácil ter ideais quando se tem a mesa farta, um trabalho, um grau académico, algumas poupanças, que, no extremo, permitirão tentar a sorte noutro local, mesmo noutro país.

Quem deu a vitória a Erdoğan foi o simples camponês da província de Adana, de Mardin ou de Kars, longe de tudo, esquecidos por todos, que luta, todos os dias, pelo seu sustento e que sonha, pela voz entoada de Erdoğan, com uma Turquia de novo grande, de novo Imperial, de novo Otomana.

Foi isso que eu senti e entendi (pois não imaginava, sequer) quando agora estive na "Turquia profunda" e que Kemal Kiliçdaroglu não entendeu: Enquanto a Turquia de Istambul e Ancara é progressista, moderna e fundamentalmente árabe (não disse islâmica), a Turquia profunda é tradicional, conservadora, otomana e cada vez mais islâmica. E foi essa Turquia que deu a vitória a Erdoğan, pois não querem um presidente cosmopolita, democrático e liberal, querem, antes, um Sultão, um Grão-vizir que lhes traga estabilidade, paz, mas, fundamentalmente, orgulho!

O orgulho, a dignidade e a fé são o último recurso de quem perdeu a esperança e, hoje, há milhares, milhões de Turcos sem casa, sem roupa, sem escolas, sem cuidados de saúde que perderam toda a esperança e domingo, nas urnas, só pediram um pouco de orgulho, de dignidade e de fé.

E isso Erdoğan prometeu, Kemal limitou-se a prometer progresso, desenvolvimento e justiça social, conceitos já tão longínquos, distantes e aparentemente inatingíveis que nem a memória deles resistiu.

Agora veremos como se "reordena" a Turquia do Sultão.

Haverá muitas purgas, muitas mudanças, tanto em termos internos como externos.

Erdoğan não irá cair no mesmo erro que José Eduardo dos Santos caiu em Angola e vai, por certo, "blindar" a sua posição, o seu estatuto e a sua riqueza no período "pós-poder". Por isso todo o "aparelho" do Estado reverterá para esse objetivo, com as Forças Armadas e o MIT a dirigir as "operações".

Em termos externos a Turquia deixará de ser tão "neutral" e conservadora, impondo a sua vontade, os seus interesses e fazendo valer a sua posição, conseguindo o que, em rigor, mais ninguém consegue: ser temida, respeitada e até atendida por ambos os blocos.

Por um lado, por exemplo, impondo-se como parte beneficiária e ativa no inevitável acordo entre a Rússia e a China, mas, em simultâneo, mantendo-se na NATO e influenciando, decididamente, as suas decisões no que, em rigor, e em termos políticos, é ter o melhor de dois mundos.

E, claro, nunca deixando de ser um "espinho bem cravado" na União Europeia que, embora não queira que a Turquia faça parte da União, cada vez mais está dela dependente (no fluxo de recursos energéticos, por exemplo), logo, cada vez mais condicionada.

Saber lidar com este tipo de realidade, com este tipo de "potência", com este tipo de influência, será um enorme desafio para a diplomacia, especialmente ocidental, nos próximos tempos.

Temos que ter bem presente um facto inegável: se a coerência de ideais e o escrutínio do eleitorado para a Rússia, China e Turquia são meros pormenores estéticos, para os países ocidentais são algo de fundamental e basilar. 

O eleitorado ocidental, confortável, abastado, ideológico, não acredita na Realpolitik, no "Deep State", não concorda com pactos dúbios, em cedências necessárias e em derrotas calculadas. 

O povo ocidental, como costumo dizer aos meus alunos, continua a acreditar em "unicórnios" e na "fada do dentinho", exigindo, a todo o custo (porque o custo não é deles), justiça, igualdade, democracia e coerência. 

E é essa coerência que Erdoğan muitas vezes porá em questão, colocará à prova e obrigará os idealistas e impolutos políticos das exemplares democracias ocidentais ter de explicar ao seu eleitorado sonhador, utópico e cada vez mais urbano-depressivo que uma coisa é o que é e outra a que devia ser, uma coisa é a força da razão e outra, completamente diferente, a razão da força, uma coisa são os ideais e outra a realidade nua, crua e agreste dos que para quem estar vivo é conquista suficiente numa vida que não escolheram viver.