QUEM MATOU NAVALNY?
"O segredo da existência humana reside não só em viver, mas também em saber para que se vive."
Fiódor Dostoiévski
Alexei Navalny, que, segundo alguns, era o principal opositor de Vladimir Putin, morreu na prisão de Yamalo-Nenet, na Sibéria, a 16 de Fevereiro de 2024.
Claro e óbvio que o mundo todo se indignou e, de imediato, atribuiu a culpa da sua morte a Vladimir Putin.
Alexei Navalny, com 47 anos na altura da sua morte, era advogado e ativista político, reconhecido pela sua luta contra a corrupção e autoritarismo do regime que, desde há mais de 20 anos, domina a Rússia na figura do seu líder incontestado: Vladimir Putin.
Navalny, desde 2000, recorrendo, primeiro à internet (num blog) e depois às recém-criadas redes sociais, criou o movimento "Rússia pelo Futuro" onde denunciava, abertamente, a corrupção crescente da Rússia, o despotismo de Vladimir Putin e o aumento do poder das oligarquias em relação ao poder do Kremlin.
Foi particularmente contundente e tornou-se popular pela exposição dos negócios fraudulentos envolvendo a gigante do gás Gazprom e a gigante do petróleo Rosneft.
Mas o apogeu da sua carreira foi, sem dúvida alguma, ter obtido 27% dos votos nas declaradamente manipuladas eleições à Presidência do Município de Moscovo em 2013, acreditando, muitos analistas que, se não fosse a manipulação dos resultados, Alexei tinha mesmo conquistado a Presidência da Capital Russa.
Com esta enorme conquista e com a crescente popularização das redes sociais, o ativista começou a ser cada vez mais interventivo e, com um trabalho árduo, inteligente e muito bem fundamentado, tornou-se, de facto e em concreto, um problema para Putin, ao denunciar, claramente, os abusos de poder, corrupção e enriquecimento ilícito do Presidente Russo e do seu séquito.
Navalny, com argumentos e provas, "esvaziava" a narrativa do regime, expondo externamente, mas também internamente, toda a hipocrisia e falsidade dos senhores do Kremlin.
Foi Alexei que denunciou a todo o mundo a construção do "Palácio de Verão" de Putin na costa do Mar Negro, algo de gigantesco, sendo o maior edifício residencial privado da Rússia que custou mais de 1,35 mil milhões de USD.
Estava a tornar-se, de facto, um problema e, em rigor, a única oposição credível e com alguma viabilidade futura ao regime tido como inabalável do Círculo de Sampetersburgo".
Por isso, ninguém estranhou, quando, em 2020, Alexei foi alvo de uma tentativa de envenenamento com uma toxina sintética e escapou, in extremis, ao ser transportado para um hospital alemão onde teve uma lenta e complicada recuperação, ficando com problemas de saúde sérios desde então.
O agente tóxico conhecido como Novichok (toxina sintética com efeito neuro bloqueador desenvolvido como arma química na União Soviética nos anos 70 e 80) só pode ter saído dos cofres dos laboratórios estatais, não havendo, por isso, muitas dúvidas de quem ordenou este envenenamento.
Também não restam muitas dúvidas que a eliminação de um "ativo" tão sensível como Navalny só podia ter sido efetuada com e por ordem do topo da hierarquia, isto é, Putin em pessoa.
Já recuperado, tendo vencido o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu, e contra a opinião de tudo e de todos, Alexei regressou à Rússia onde, como é obvio, foi imediatamente preso, julgado num processo encenado, condenado a 19 anos de prisão pelo crime de "extremismo" e enviado para uma prisão no Círculo Polar Ártico.
Na Rússia liderada pelo KGB os problemas resolvem-se na sua origem e de modo definitivo. E o "problema Navalny" já tinha atingido uma dimensão sem precedentes para os padrões do Kremlin.
Depois disso a sua esposa ainda tentou encabeçar e promover o movimento criado pelo seu marido, mas a sua falta de carisma, a guerra da Ucrânia e a própria conjuntura geopolítica e, em especial, geoeconómica mundial, relevaram o movimento "Rússia pelo Futuro" para um segundo plano não sendo notícia há vários meses.
Os argumentos anti-Putin sustentados por uma invasão criminosa da Ucrânia e os sucessivos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos pela Rússia no conflito tornaram quase irrelevantes as suspeitas de corrupção, favorecimento e branqueamento de capitais sustentadas por Alexei.
Em rigor, do ponto de vista político e diplomático, falando realisticamente, Navalny deixou de ser um "ativo de interesse" para os opositores internos e externos de Putin.
E são precisamente estas razões que me levam a ter uma opinião muito forte de que, desta vez, Vladimir Putin, não teve nada a ver, diretamente, com a eliminação do seu opositor.
Sendo, sem margem para dúvida, autor moral da sua morte, acredito que não o foi do ponto de vista material e que não tinha a vontade de, neste momento em particular, que tal acontecesse.
Que não restem dúvidas que sou um forte e declarado opositor de Vladimir Putin, do seu regime e de tudo o que está a fazer à Rússia, ao povo russo e a outros povos como o ucraniano, mas também ao bielo-russo e georgiano.
Mas ser opositor de alguém não impede que sejamos realistas, pragmáticos e objetivos.
E esse realismo, esse pragmatismo e essa objetividade obrigam-nos a admitir que, não obstante ser um déspota sanguinário, um ditador vingativo e um tirano prepotente, Putin é, também, um político astuto e um estratega frio e eficaz.
Toda a sua história, toda a sua carreira, toda a sua ascensão das ruas de Leningrado ao domínio de todas as Rússias é disso prova.
A confirmação que estas "qualidades" não se estão a desvanecer demonstra-se em como geriu e lidou com todo o "processo" do Grupo Wagner e do seu líder Pavel Prigozhin. Já tive oportunidade de escrever muito sobre essa questão a que até dei o nome de uma célebre jogada de xadrez, o "gambito de dama" em que se demonstra fragilidade para, quando o opositor achar que está a salvo ou mesmo perto da vitória, se desferir o golpe fatal, o xeque-mate.
Assim, mesmo que todos saibamos que Putin não teria, como não teve, problema nenhum em mandar eliminar Navalny, acho que não foi ele que, desta vez, deu a ordem.
Primeiro porque Navalny já não era um assunto premente e preocupante para Putin.
De facto, a sua reclusão nos confins da gélida Sibéria e a incapacidade do seu movimento continuar a influenciar as agendas políticas sem a sua voz e a sua presença carismática não lhe tiravam o estatuto de "problema" para o Kremlin, mas remetiam-no para segundo plano numa circunstância em que o presidente russo tem tantos e tão mais sérios problemas com que lidar.
Outra razão que me leva a acreditar na "inocência" de Putin neste caso é que este não era o momento, muito antes pelo contrário, para proceder a uma "operação" desta natureza.
Putin, com o conflito na Faixa de Gaza, a pirataria na rota do Mar Vermelho potenciada pelo conflito no Iémen e com a crescente instabilidade no Sahel, estava a conseguir "diluir" e, consequentemente, a enfraquecer a causa ucraniana ao ponto de eu ter afirmado, há semanas atrás, que achava que Putin estava por detrás de todos estes focos de tensão.
E esta estratégia até está a resultar. O apoio dos países ocidentais à Ucrânia tem decrescido, o suporte dos Estados Unidos está mesmo paralisado e as opiniões públicas ocidentais começam a ficar "cansadas" da exposição mediática de Volodymyr Zelensky, que, mesmo internamente, começa a ter sérios problemas e a sofrer um crescente desgaste como prova a recente "purga" do Estado-Maior das Forças Armadas Ucranianas.
Ora, não ia ser agora, e logo agora, que Putin ia tomar esta ação sabendo, perfeitamente, que todos o iam apontar como culpado.
Reparem que Putin, nos últimos meses, tem desencadeado uma campanha nítida e declarada de "branqueamento" da sua imagem, dando várias entrevistas, inclusive a órgãos de comunicação social ocidentais, a apoiar causas meritórias como a autodeterminação do povo palestiniano, a surgir mais sorridente, mais amistoso, mais "humano", visitando escolas, hospitais, habitações sociais.
Porque arruinaria meses de "campanha" num ato que não lhe traz benefício direto ou que não anula nenhum perigo iminente?
Outra razão: Putin será submetido a eleições a 17 de Março.
Óbvio que todos sabemos que as eleições serão manipuladas, mas quanto menos forem melhor para Putin, como é obvio. Porque ter o povo do seu lado, ter o maior número de votos reais possíveis, ter, na realidade, uma vitória é fundamental para Putin. Não para ganhar as eleições, mas para mostrar aos oligarcas que não depende só deles para se manter no poder e que, se as cúpulas do Kremlin tentarem um "golpe palaciano", Putin terá o apoio do povo russo.
Por isso este é o pior momento possível para Putin ser apontado como "assassino" e estar exposto a uma campanha de descredibilização por parte da comunidade internacional que, de um modo ou de outro, será aproveitada pela oposição interna.
E se a oposição popular é crescente, mas controlável, a oposição no topo da hierarquia do poder russo é cada vez maior, mais perigosa e não tão controlável.
Ainda outra razão: as eleições americanas.
Já tinha dito no Realpolitik que Biden fará do "monstro russo" o mote da sua campanha simplesmente porque não tem outro. Com a política interna cada vez pior, com a externa em sucessivos impasses como na Faixa de Gaza, resta a Biden apelar ao "velho fantasma" russo para galvanizar o eleitorado de direita e de esquerda numa causa comum e assim conseguir derrotar Trump.
Óbvio que Putin prefere Trump a Biden.
Ainda na semana passada demonstrou isso ao afirmar precisamente o contrário.
Ao ser questionado numa entrevista efetuada pela Televisão Estatal Russa, de quem preferiria ver na Casa Branca, Putin respondeu, tão prontamente quanto uma pergunta previamente combinada permite, que preferia Biden, sabendo que, ao dizer isso, provocaria no eleitorado americano o efeito precisamente contrário.
Afinal, quem, da direita Republicana, cada vez mais extremada (ou até da esquerda Democrata) americana votará no candidato apoiado por Putin?
Ora, a morte de Navalny veio fortalecer, em muito, a "causa" e os argumentos de Biden, permitindo-lhe, agora, chamar de "assassino" Vladimir Putin.
Outro argumento e este muito simples: Putin sabe, de cor e salteado, a velha máxima de Kierkegaard que afirma que "Um Homem morre e o seu poder termina, um mártir morre e o seu poder começa."
E Vladimir Putin não é louco para, neste momento, criar, por iniciativa própria, um mártir para lhe fazer frente.
Outros argumentos há, mas acho que, somente estes são prova que este seria o pior momento possível para Putin mandar eliminar Navalny.
Putin, sem dúvida nenhuma, neste momento e nesta circunstância, perde muito mais do que ganha com a morte do seu opositor.
E, todos sabemos, que um estratega como Vladimir Putin simplesmente não comete erros como este e faz este género de operações de um modo muito mais subtil.
Por exemplo um indulto a Navalny depois das eleições mostrando "benevolência" e boa-vontade e, depois, alguns meses depois, um "conveniente" "enfarte", "queda acidental" (as janelas tem-se mostrado muito perigosas em Moscovo) ou "acidente aeronáutico" são muito mais o "estilo" de Putin e em que já se tornou um verdadeiro especialista.
Mandar matar um opositor, sob tutela e responsabilidade do Estado a poucos dias de eleições internas e em plena campanha do principal opositor, tornando-se, assim, o centro das atenções, não é MESMO e em absoluto o estilo da "velha raposa" simplesmente porque é demasiado estúpido, imprudente e óbvio.
Fica, então, no ar, uma questão: quem matou Navalny?
Uma hipótese muito plausível é ter sido a própria natureza.
Sabemos que o envenenamento em 2020 deixou Alexei com sérias sequelas, especialmente ao nível renal e hepático.
As condições de reclusão da IK-3, desde as temperaturas (atingem os -40º C), acomodações até à alimentação e cuidados de saúde não são propriamente as mais indicadas para um homem saudável, quanto mais para alguém com problemas de saúde.
Segundo a CNN a taxa de mortalidade nas prisões russas é das mais altas do mundo e Navalny estava numa das mais cruéis e impiedosas, uma adaptação de um dos antigos gulags soviéticos (construído em 1961 com o código Gulag 501) em que a taxa de mortalidade era superior a 20%.
Outra hipótese é ter sido a oposição a Putin (interna ou externa) a mandar eliminar Alexei Navalny no momento em que sabia que Putin sofreria maior dano reputacional, tanto interno como externo, com a morte do seu opositor.
Hipótese remota, não pela falta de vontade de muitos (por exemplo do SBU - Serviços de Informações Ucranianos), mas pela falta de capacidade de quase todos.
Eliminar um "Alvo sensível" sob a tutela do sistema prisional russo e, por certo, com vigilância permanente do FSB e mesmo do GRU, seria uma operação muito arriscada que só alguns Serviços no mundo conseguiriam executar e esses, neste momento, ou tem muito pouco a ganhar com a eliminação de Navalny (como seria o caso do ISI ou da Santa Aliança) ou tem mais do que se preocupar no momento (como é o caso da Mossad e do MI6).
Não estou a ver outros Serviços para além destes 4 a ter capacidade, meios e engenho para desencadear com sucesso uma operação desta envergadura e desta complexidade.
Por último: todos sabemos que, antes de mais e primeiro que tudo, Putin continua a ser um "tchequista", isto é, um agente do KGB.
Várias vezes demonstrou que, para ele, o ser "tchequista" é mais do que uma profissão, é mais do que um estatuto, é mais do que uma vocação. É como que uma segunda natureza que quase substituiu a sua primeira natureza, algo que assume desde adolescente quando, pela primeira vez se candidatou ao Komite.
Putin pensa, planeia e age como um KGB em todas as facetas da sua vida, desde a imagem publica, às decisões políticas, à imagem pessoal e familiar.
E uma das regras sagradas do KGB é a dissimulação em que nunca o que parece ser é o que, de facto, é.
O KGB nunca "mostra o jogo", mesmo quando vence.
Assim, nunca, mas nunca mesmo, um "tchequista" neste momento e desde modo eliminaria um opositor.
Desta forma, num mundo em que o que parece ser raramente é e em que o obvio é quase sempre um engodo, a morte de Navalny é daqueles mistérios que só daqui a muitos anos se revelará.
Ou nunca!
Pode ser daqueles crimes que se assumem como o real crime perfeito, pois, como dizia o genial Sir Arthur Conan Doyle, "crime perfeito não é quando o autor sai impune, mas quando o autor faz com que outro seja condenado no seu lugar".
Por último a minha expressão sincera de uma tristeza profunda pela morte de um homem justo, corajoso, sem medo, um herói que, literalmente, deu a vida por aquilo em que profundamente acreditava.
Se houvesse mais homens como Alexei Navalny haveria muito menos homens como Vladimir Putin!
A Alexei Navalny honra, mérito, respeito e a promessa que nem ele nem a sua mensagem e exemplo serão nem esquecidos nem em vão.
Até sempre Alexei!
покойся с миром, герой!
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