PUTIN: O SENHOR DO ATLÂNTICO SUL COMO VLADIMIR PUTIN CONSEGUI O DOMÍNIO SOBRE O ATLÂNTICO SUL
Foi sem grande mediatismo e sem grande atenção que a notícia, avançada pela agência noticiosa russa Sputnik, de que São Tomé e Príncipe tinha assinado um tratado de cooperação militar com a Federação Russa, foi recebida pela opinião pública ocidental.
Este acordo, já confirmado pelo governo santomense implica, segundo fontes oficiais citadas pelo Expresso, "um acordo técnico militar que prevê formação, utilização de armas e equipamentos militar e visitas de aviões, navios de guerra e embarcações russas ao arquipélago." (fonte Jornal Expresso)
Em simultâneo, o Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, em visita à Rússia, como convidado de honra de Vladimir Putin para os festejos do "Dia da Vitória", declarou que a Rússia "pode contar com a Guiné-Bissau como aliado permanente". (fonte Jornal Expresso)
Estas duas situações, do ponto de vista geopolítico e geoestratégico levantam tantas questões e preocupações que até são difíceis de enumerar.
A primeira, e obvia, é como é que foi possível o Ocidente ser surpreendido em relação a estes tratados?
Tanto a União Europeia como Portugal, país "irmão" das duas nações africanas, confessaram à imprensa "surpresa", "estranheza" e "apreensão" em relação a estes 2 tratados (também fonte Expresso).
As negociações para estes tipos de tratados duram meses, delegações vão e vem, diplomatas encontram-se, políticos chegam a compromissos antes de os respetivos Chefes de Estado assinarem os documentos.
E tudo isto foi feito "debaixo das barbas" dos Serviços de Informações Ocidentais sem que ninguém desse o alarme e impedisse a assinatura desse tratado (que devia ter sido evitado).
É simplesmente ridículo e absurdo que os políticos ocidentais tenham sabido pela imprensa russa que estes tratados existiam e isto com o hiato de alguns dias.
É um erro gravíssimo do ponto de vista de diplomacia e, fundamentalmente, de Intelligence e Contra-Intelligence.
Isto deve-se, sem dúvida nenhuma, a algo que eu já abordei aqui no Realpolitik num texto a que chamei "A nova África": o ocidente ainda não leva a África a sério, ainda não a assume como central e incontornável no novo ordenamento geopolítico mundial. (https://www.realpolitik.org.uk/l/a-nova-africa/)
Para o ocidente África ainda é aquele continente das ex-colónias repleto de "pretinhos" que é necessário alimentar. E, como expliquei nesse texto, há muito que África deixou de ser o continente pobre e irrelevante em termos geopolíticos, tornando-se, quase, o "centro do mundo" e assumindo uma relevância estratégica central numa nova configuração global que se avizinha.
Assim os políticos ocidentais foram apanhados de surpresa.
Mas, perguntam vocês: porque é que estes tratados são assim tão graves?
Simples: por algo chamado de "poder de projeção".
Poder de projeção define-se, de um modo muito simplista, por uma posição geográfica privilegiada e estratégica que serve de ponto de apoio para lançar meios militares (com raio de ação limitado) em determinada área ou zona territorial conferindo assim supremacia ou, no mínimo, poder de influência, nessa área.
Ora, todos sabemos que as ligações entre o Indico-Pacifico com o hemisfério norte se fazem por 2 rotas possíveis (excluindo a rota do Pacifico completamente impensável devido à distância):
a rota do Suez e a Rota do Cabo.
Estas rotas permitem que todos os produtos produzidos no oriente, nomeadamente China, Coreia, Japão, Índia, para além dos grandes manufatores do sector secundário como Singapura, Siri lança, Bangladeche etc, façam chegar os seus produtos aos mercados europeus e norte-americanos, altamente dependentes desses fornecimentos.
Também, dessas duas rotas, dependem todas as exportações do Ocidente para os mercados asiáticos cada vez mais atraentes e lucrativos.
A acrescentar a tudo isso estas rotas são necessárias para fazer chegar à Europa o petróleo de que tanto precisamos porque a sua esmagadora maioria vem do golfo pérsico e, atualmente, nem as produções norte-americana (muito longe e quase toda absorvida para consumo interno), como a produção russa (viabilizada pelos embargos impostos devido ao conflito com a Ucrânia) nos podem "livrar" dessa dependência.
Ora, todos sabemos que a Rota do Suez, muito mais curta, logo muito mais rápida logo rentável, está, há meses, seriamente comprometida pela ação dos Hutis do Iémen, apoiados pelo Irão, assim como a Rota do Golfo Pérsico, tornando estes dois "corredores" marítimos completamente impraticáveis.
Ora, restava, então, a rota do Cabo, que, embora muito mais demorada e cara, era a possível.
Por isso este tratado é tão grave: porque entrega o controlo da Rota do Cabo à Rússia (dando-lhe possibilidade de literalmente interditar o Golfo da Guiné) além de lhe dar o tal "poder de projeção" em todo o Atlântico Sul.
Para além da área enorme que corresponde às águas territoriais santomenses, há ainda a área em que as forças russas, desde esse ponto, podem operar e condicionar o tráfego marítimo em águas internacionais.
Desta forma a "trindade" de China- Rússia – Irão ficam no controlo das principais rotas marítimas mundiais ficando, a salvo, e neste momento, a Rota do Panamá.
O domínio dos mares, por onde são transportadas 90% das mercadorias mundiais, está, assim, quase completamente nas mãos da "trindade", dando ainda hipóteses, através de São Tomé e do controlo do Golfo da Guiné, que a Rússia projete a sua armada por todo o Atlântico Sul, interferindo, por exemplo, com todas as exportações da América do Sul para o hemisfério norte.
Ora, o Ocidente é dependente do setor secundário Asiático mas também do setor primário sul americano.
Há muito que o Ocidente, num erro estratégico colossal, se assumiu como o líder do setor terciário, deixando de ser auto-suficiente em termos de agropecuários assim como de industria transformadora, esquecendo-se que o setor terciário, por muito lucrativo e rentável que seja, não funciona sem o setor primário (que lhe garante o que comer) e do setor secundário (que lhe garante o que vender, vestir, produzir, etc.).
Desta forma, com este tratado, a Rússia, juntamente com o Irão e totalmente apoiados pela China (que tem questões a resolver no Mar da China), conseguem fazer uma "tenáz" ao Ocidente, deixando-o completamente à mercê das vontades e desígnios de Moscovo, Teerão e Pequim.
Como já afirmei várias vezes, enquanto os Estados Unidos se afundam em questões internas cada vez mais graves e insolúveis e enquanto a União Europeia prossegue numa política externa sem visão estratégica e mesmo tática, sem inteligência e sem propósito, não conseguindo, até, resolver os problemas dentro da própria Europa como é caso da Ucrânia, a Federação Russa e a República Popular da China, passo a passo, silenciosa mas eficazmente, com uma visão estratégica bem definida e com uma "máquina" diplomática e de Intelligence extremamente eficaz e impiedosa, assumem posições por todo o globo que, quando se der o "confronto aberto" efetivo tanto entre a Rússia e o Ocidente, como, principalmente, entre a China e o Ocidente, serão decisivas no desfecho desse confronto.
Um mapa, divulgado pelo projeto "Burn After Reading", em Abril de 2024, demonstrou, com aterradora clareza, os países em África com quem a Rússia (ou suas empresas subsidiárias ou "de fachada") tem acordos e forte influência.
Perante este mapa é fácil de entender para que lado tenderá África quando for a hora de optar entre os dois blocos.
O ocidente, em especial a União Europeia e os Estados Unidos, tem de assumir, de uma vez por todas, que a África é central na configuração geolítica atual, que os países que a constituem são alvos estratégicos em termos de geopolítica (logo de intell) e que garantir posições influenciadoras, firmadas com tratados de cooperação, fundamentalmente militar, já não é prioritário, mas passou a ser urgente.
Só como exemplo, avanço com o Arquipélago de Cabo Verde que se "cai" sob a influencia ou Russa ou chinesa garante, pelo seu posicionamento geográfico o total domínio de quase todas as rotas do Atlântico.
Não terminarei lembrando que países como o Brasil fazem parte do BRICS, logo, estão sobre forte influência Chinesa e Russa, e todos sabemos do "antagonismo" de décadas de países como a Argentina e quase toda a América do Sul ao "bloco ocidental".
Países como a Venezuela, o Uruguai, Cuba e Paraguai tem fortes e antigas "questões" com vários países-chave da OTAN/NATO em especial com os Estados Unidos da América que, durante a década de 70 e 80 foi fortemente interventivo nessa zona, promovendo golpes de Estado, derrubes de governos e intervenções militares diretas como foi o caso da deposição do Presidente do Panamá, Manuel Noriega, em 1989.
São todos países com forte influencia de "esquerda" que muito mais fácil "alinharão" ao lado da China do que dos Estados Unidos, comprometendo, não só o fornecimento de produtos como a Rota do Panamá que faz a ligação Pacifico-Atlântico.
Desta forma é necessário, antes de mais e primeiro que tudo, uma nova, mentalidade do Ocidente tanto em relação a África como da América Latina, tanto em termos de diplomacia como de Intelligence.
O Ocidente tem de aceitar, de uma vez por todas que a "Guerra Fria" é passado, que com o seu fim o mundo não ficou mais pacifico (muito antes pelo contrário) e que, neste momento, está-se a configurar toda uma nova ordem mundial liderada pela República Popular da China que está a "jogar" um "jogo" de longo alcance e que sabe aguardar os melhores momentos para fazer as suas "jogadas".
Esta situação pode ser comparar a uma prova de atletismo: o Ocidente está a correr uma prova de 400 metros, a China e a Rússia estão a correr uma maratona. O ocidente até pode obter vitórias esporádicas, momentâneas e mais imediatistas, mas quem levará a "medalha" final serão sempre os "corredores de fundo".
Precisamos de estratégia, de inteligência e astucia na política, na diplomacia e na defesa dos países ocidentais, porque, sem isso, o nosso destino está a ser entregue, de mão beijada e em bandeja de prata ao bloco oriental, dominado por países ditatoriais, despóticos e com regimes absolutistas e corruptos.
Assim, não está em causa unicamente os nossos sistemas económicos, financeiros e de fornecimento de bens, mas também e fundamentalmente, os nossos princípios mais sagrados, o Estado de Direito Democrático, os nossos direitos, liberdades e garantias, em suma, a nossa Liberdade.
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