OS NOMES DA HIPOCRISIA

22-11-2022


Porta-te mal. Fá-lo bem. Elimina as provas... e nega tudo!

John Le Carré


Acho que todos tem a noção, se mais não for inconsciente, que há 2 tipos de política.

Uma é a política pública e mediática, aquela dos discursos e das declarações, das tomadas de posição, das ideologias e dos princípios inabaláveis, enfim, a política das campanhas, dos comícios, das assembleias, dos parlamentos.

Não é, ao contrário do que muitos possam pensar, nem obviamente falsa nem obrigatoriamente hipócrita.

É, na política pública que, perante o eleitorado, se assumem os compromissos, se definem as linhas estratégicas, se comunica os programas, as metas e os objetivos de cada candidato à governação dos Estados e das Nações.

Também é na política pública que se distinguem ideologias, modos de ser, estar e fazer política, que se formam movimentos e iniciativas que, de facto, transformam a sociedade e a comunidade dos cidadãos.

Claro que, este tipo de política, quando deturpada, mal aplicada ou executada por incompetentes, também é a política da maledicência, da mentira, da promessa vã, do discurso vazio e inconsequente...

Mas, convenhamos, que algo não é mau só por alguns (atualmente, creio, que a maioria) o fazerem mal feito e o usarem para os fins que não era suposto usarem.

Em tudo há de todos!

É uma das leis imutáveis desta vida.

A política não é exceção.

A política pública é o modo como a democracia se exerce e envolve os cidadãos e as comunidades na gestão da coisa pública.

Mas depois há a outra política, aquela que faz acontecer a política pública. É a política prática, a política real (a famosa Realpolitik), aquela que torna possível que se atinjam as metas e os objetivos anunciados e prometidos na política pública. É a política dos acordos secretos, das conversas de corredores, de maquinações e manipulações, de traições anunciadas e de alianças improváveis, a política que se move no lado negro da sombra.

Também, tal como a outra, não é, na génese, má ou perniciosa. Antes pelo contrário. É ela que torna possível as coisas, que faz com que os países e as nações funcionem, que sejam produtivas, que mantém as balanças orçamentais equilibradas, a estabilidade monetária, o valor dos commodities e tantas, tantas outras coisas que são necessárias para que, todos, tenhamos o que temos e vivamos a vida que vivemos. É a política já não dos políticos, mas a política dos Mandarins, do agora chamado de Deep State, dos Gabinetes, dos "Serviços Secretos", como se chama no Reino Unido: a Firma.

David Cromwell, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário de John Le Carré (um membro ativo deste submundo da política real) descrevia, deste modo, o ideal do trabalho na Realpolitik: "Porta-te mal, fá-lo bem, elimina as provas e nega tudo."

A perda da consciência de alguns é um preço aceitável pela manutenção da consciência de muitos.

Acredito nisso!

Para que muitos vivam tranquilos outros tem que se esforçar e, por vezes, fazer aquilo que não se orgulham nem confessarão nas suas memórias.

Se na política pública os fins condicionam os meios, na Realpolitik são os fins que ditam os meios.

E, mais uma vez, nada disso é necessariamente mau, como uma primeira e emotiva análise pode fazer supor.

Se os fins estiverem claramente definidos e solidamente assumidos e que sejam a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a dignidade inquestionável de todo o Ser Humano, independentemente da raça, religião, credo, género, convicção política e social, orientação sexual, então os fins, que é a proteção desses valores que nos sustentam e definem, valem mesmo todos os meios. Algumas vezes são meios violentos, ardilosos, que não passariam num exame de ética descontextualizada. Mas são os meios da legitima defesa de algo que temos a certeza que vale a pena defender custe o que custar.

Há valores que tem, em absoluto, de se defender, porque são parte integrante do que somos e queremos ser. Sem eles nada seriamos, por isso, defendê-los é defendermo-nos a nós próprios.

Mas há princípios práticos que não se podem ultrapassar sob pena de toda esta estrutura, que, convenhamos, tem uma sustentação muito frágil e delicada, ruir por completo.

Nem a política pública pode prometer o que a política real não pode cumprir, nem a política real pode fazer o que a política pública, de um modo mais ou menos explícito, sancionou democraticamente.

Há, tem de haver, um terreno comum em que os dois tipos de política se unem, se complementam e, fundamentalmente, encontram uma base de coerência e legitimidade (ninguém falou de legalidade).

Há uma área em que tudo deve fazer sentido e tudo deve estar claro.

E isto tudo para chegar onde?

Obviamente que a política real tem de manter boas relações com países como o Catar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e outros que tais. Gostemos ou não, ainda somos completamente dependentes dos combustíveis fósseis e esses países são dos maiores produtores de petróleo do mundo. Não ser abastecido por esses países levaria o ocidente à idade da pedra. Não teríamos como produzir, como nos deslocar, como manter o nosso tão confortável nível de vida.

E, por muitos altos ideais que tenhamos, tudo muda quanto aquilo que temos como adquirido é posto em causa.

Todo o ideal é um grande ideal quando não põe em causa o nosso conforto.

Do mesmo modo esses países, riquíssimos devido aos petrodólares, são fundamentais para as balanças orçamentais de muitos países, sendo gigantescos importadores de todos os bens de consumo porque nada produzem para além do valioso petróleo.

Na política real esses países são um mal necessário, são os aliados que somos obrigados a ter, são o mal menor.

Mas na política pública esses países têm de ser o que são, de facto: estados déspotas e totalitários que negam (e reiteram a sua negação) dos valores mais fundamentais que defendemos e que nos definem. Negam os princípios mais básicos do Estado de Direito, a igualdade entre os cidadãos, a liberdade de expressão, de associação. Negam um sistema judicial justo e transparente, onde haja a garantia da presunção da inocência e do direito ao contraditório. Discriminam as mulheres a um nível inadmissível, perseguem a comunidade LGBTI+ como se de criminosos se tratassem e punem, sem apelo nem agravo, todos aqueles que não seguem o seu pensamento radical, fundamentalista e obtuso.

O Catar é isso e muito mais. É a expressão clara de tudo o que não concordamos, e se a política real tem, a custo, de a aceitar, a política pública tem, por força, de a condenar.

Como já referi várias vezes, se a política real se prende aos meios e política pública prende-se com os fins.

A primeira garante que podemos ter os nossos direitos, a segundo que os temos.

Desta forma permitir a realização de um campeonato do mundo de futebol no Catar é confundir os fins com os meios, é confundir o necessário com o aceitável, é tornar um mal necessário num facto aceite.

Uma coisa é comprar petróleo ao Catar, vender-lhe produtos, vincando, sempre, que só o fazemos porque não temos outra hipótese e fazendo sempre pressão para que alterem a sua postura em relação aos mais fundamentais direitos humanos.

Outra coisa, completamente diferente, é permitir a realização, no seu território, de um evento de dimensão internacional, onde estão Chefes de Estado e de Governo, sorridentes e alegres, saudando, reverenciando, sancionando os líderes do despotismo e da opressão.

As mesmas mãos que apertam as mãos dos nossos Chefes de Estado e de Governo são as mesmas que assinam penas de morte por lapidação de mulheres só porque não usaram o véu, são as mãos que assinam mandatos de captura sem fundamento de prova, são as mãos que promulgam leis que equiparam homossexuais a animais.

Os sumptuosos estádios onde os nossos políticos saúdam as suas seleções nacionais foram construídas recorrendo a trabalho no limiar da escravatura, sem as mais elementares e humanas condições de trabalho, com imigrantes ilegais sem qualquer direito ou condição tendo muito deles morrido ou ficado doentes para o resto da vida.

E relativizar esta questão, afirmando, cobardemente, que agora o que o interessa é o desporto é afirmar, na política pública, o que nunca pode ser admitido: que os direitos dos trabalhadores, das mulheres, das minorias, os mais fundamentais direitos humanos, quando se paga bem, podem ficar para segundo plano, podem ser "ignorados", relativizados, aceites e tudo isso na arena pública, tornando-se assim facto, tornando-se assim reais, tornando-se assim História.

Afinal os nossos fins, aquilo que defendemos e nos define, estão à venda pelo melhor preço.

Afinal já não há necessidade da política real. Essa existia para executar os males necessários mantendo a coerência no que, de facto, importava. Agora, se já mais nada importa, se mais nada defendemos, se mais nada salvaguardamos, se a coerência é um conceito transaccionáveis, de que vale tudo isto?

Os políticos atuais (estou convencido que mais por ignorância e estupidez do que por interesse, calculismo e ganância), ultrapassaram uma "linha" sem retorno, uma fronteira sem volta: com a sua conivência e participação afirmaram que tudo, mas tudo mesmo, está à venda, que nada é fundamental, tudo é transacionável e, assim, ninguém, de facto, está salvaguardado, ninguém está seguro, pois, pelo dinheiro, tudo se consegue.

Outra coisa afirmaram os nossos políticos publicamente: que há dois pesos e duas medidas. O que coloca alguns Estados sob pesadas sanções noutros não tem qualquer importância, o que é razão para a declaração de guerra para alguns países para outros não merece mais que uma breve e envergonhada censura, o que para uns é perfeitamente inadmissível para outros é perfeitamente compreensível.

Afinal só há uma coisa coloca países como a Coreia do Norte, o Iémen, o Irão e a Somália na "posição" de, em vez de inimigos esmagados por sanções, serem amigos que ouvem "raspanetes" em surdina: não terem o dinheiro suficiente para comprar a aceitação e a simpatia do mundo ocidental.

Por último sempre me ensinaram que o desporto é o meio de manter o corpo são numa mente sã. Sempre me inspiraram os ideias olímpicos do Barão Pierre de Coubertin em que o desporto é a superação do Homem pelo Homem em direção a um bem maior.

Com este mundial o desporto, em especial o futebol, assumiu-se, em definitivo e claramente, na sua condição de negócio sem barreiras nem limites, sem escrúpulos em que tudo, desde atletas a resultados, desde regras a instituições estão a saque de quem tem mais poder e mais dinheiro.

Este mundial, para a política real, é uma hecatombe de proporções apocalípticas pois tira-lhe as últimas salvaguardas da integridade da política real, que não são políticas nem tão pouco ideológicas, são antes bem simples e comezinhas: a necessidade de coerência, a noção de ridículo e o sentido de vergonha.

Quando nem a vergonha resta àqueles que nos governam que mais podemos esperar?

Quem já não tem, sequer, de manter a coerência, o seu respeito próprio e algum sentido mínimo de dignidade pessoal é porque perdeu tudo, e quem perdeu tudo é capaz de qualquer coisa, precisamente porque já não tem nada a perder.

Nada! Já nem a hipocrisia!