OS ESTADOS UNIDOS E A SUA TENTAÇÃO DE POLÍCIA DO MUNDO

Sinceramente pensei que já iam longe os tempos em que os Estados Unidos se auto-intitulavam de "polícia do mundo", "garante da democracia" ou "bastião da Liberdade".
Mas a história parece teimar em repetir-se, ainda que com roupagens diferentes e novos cenários internacionais.
A queda da "cortina de ferro" poderia ter sido um momento de viragem, uma oportunidade para construir uma ordem mundial assente no diálogo, na cooperação e no respeito pela soberania dos povos.
No entanto, em vez disso, assistimos ao prolongamento de uma mentalidade intervencionista, mascarada de boas intenções.
O mundo de hoje não é o da Guerra Fria.
As ameaças não são claras nem lineares, multiplicam-se em redes difusas de terrorismo, ciberataques, crises energéticas e mudanças climáticas.
Mas, paradoxalmente, os Estados Unidos insistem em olhar para o mapa global como se ainda pudessem ditar quem manda e quem obedece.
A primazia do Direito Internacional deveria ser a pedra angular das relações entre Estados.
A soberania nacional e o respeito pelas instituições democráticas deveriam ser princípios intocáveis.
Porém, na prática, vemos demasiadas vezes estes princípios a serem relativizados quando entram em choque com os interesses de Washington.
É verdade que há regimes que desafiam os valores humanos mais elementares. A Venezuela de Nicolás Maduro é um exemplo paradigmático: ditatorial, opressora, corrupta e criminosa. Poucos ousam contestar essa realidade.
Mas a questão essencial não é se Maduro é legítimo ou ilegítimo. A questão fundamental é se cabe aos Estados Unidos — ou a qualquer outra potência — decidir unilateralmente quem governa um país soberano.
Podem impor sanções devastadoras, bloquear economias inteiras ou até encenar intervenções militares apenas porque não concordam com o regime em vigor?
Não é essa uma lógica de força bruta disfarçada de moralidade?
Essa postura de "dois pesos e duas medidas" tem um custo altíssimo para a credibilidade norte-americana. Porque aquilo que exigem a uns, toleram noutros. Aquilo que condenam num palco, justificam noutro.
O exemplo de Israel e da Palestina é gritante. Uma ocupação prolongada, violações sistemáticas de direitos humanos e ataques reiterados encontram uma complacência internacional quando há apoio dos Estados Unidos.
Em contrapartida, quando a Rússia invade a Ucrânia, a indignação é imediata, as sanções caem em catadupa e a condenação moral é sem reservas.
Que lógica é esta, senão a da conveniência?
Mas o caso torna-se ainda mais delicado quando recordamos que os próprios Estados Unidos se reservam o direito de intervir em qualquer parte do mundo, seja no Iraque, no Afeganistão, na Líbia ou na Síria, sempre em nome de uma suposta defesa da liberdade.
O problema é que, em muitos desses cenários, o resultado foi destruição, instabilidade e caos, mais do que democracia, progresso ou paz.
É difícil (senão impossível) apontar um único caso de intervenção americana unilateral que tenha deixado um legado positivo e duradouro.
Ao agirem como juízes e carrascos, os Estados Unidos não só descredibilizam a ordem internacional como abrem espaço para que outros atores disputem esse papel. E aqui entra o bloco sino-russo, pronto para apresentar-se como contraponto à hegemonia ocidental.
A China e a Rússia, ainda que longe de serem modelos democráticos, aproveitam cada contradição americana para reforçar a sua influência global. E o fazem com uma narrativa poderosa: a denúncia da hipocrisia do Ocidente.
Neste contexto, a tentação americana de se assumir como polícia do mundo deixa de ser apenas uma questão moral. Passa a ser também uma questão estratégica: cada passo em falso fortalece os adversários.
A liderança americana tem de ser exercida de forma diferente. Não pela imposição da força, mas pela demonstração de coerência, de respeito e de compromisso com os princípios que proclama.
O poder dos Estados Unidos é inegável!
Mas o poder não basta se não for legitimado por uma autoridade moral que inspire confiança.
E confiança constrói-se pelo exemplo.
É no respeito às regras internacionais que se demonstra grandeza.
É na defesa imparcial da democracia que se prova integridade.
Os Estados Unidos só poderão continuar a ser uma referência se liderarem pelo reforço das instituições multilaterais, pela cooperação e pela diplomacia.
É esse o caminho que garante a estabilidade do sistema internacional e preserva os valores que dizem defender.
Liderar pelo exemplo significa aceitar limites, reconhecer que o mundo não é propriedade de uma potência, mas um espaço comum, com regras que devem ser respeitadas por todos.
Significa também assumir que a democracia não se exporta à força.
Que cada povo deve ter o direito de escolher o seu destino, sem imposições externas.
Caso contrário, o risco é claro: outros atores menos comprometidos com a liberdade e com os direitos humanos preencherão esse vazio.
E o farão sem escrúpulos!
A tentação de polícia do mundo pode parecer sedutora para quem acredita no mito da excepcionalidade americana.
Mas é, em última análise, uma armadilha que mina a credibilidade externa e desgasta a coesão interna.
O que o mundo precisa não é de uma polícia, mas de um facilitador. Não de um juiz, mas de um mediador. Não de um carrasco, mas de um parceiro.
A verdadeira liderança exige humildade!
E talvez seja essa a lição mais difícil para os Estados Unidos aprenderem.
O poderio militar pode impor silêncio temporário, mas não gera paz duradoura. O medo pode travar conflitos momentâneos, mas não cria alianças de confiança.
Só o respeito mútuo tem força para cimentar uma ordem internacional estável. Só a cooperação sincera pode enfrentar as ameaças globais que desafiam toda a humanidade.
Mudanças climáticas, crises sanitárias, desigualdade social e tecnológica são problemas que não se resolvem com porta-aviões ou sanções, mas com alianças e compromissos comuns.
E, no entanto, os Estados Unidos parecem continuar presos à ideia de que o mundo só se mantém em ordem quando eles puxam os cordelinhos.
Mas a realidade é outra: o mundo tornou-se multipolar, plural e interdependente. Nenhum Estado, por mais poderoso que seja, consegue ditar sozinho o rumo da História.
Se insistirem em manter a lógica da imposição, arriscam perder o espaço que ainda detêm como referência de democracia e liberdade.
A alternativa está em mãos deles: ou escolhem liderar pelo exemplo e pelo respeito, ou acabam por cair na irrelevância moral, mesmo que mantenham a força material.
A História não perdoa hegemonias eternas.
Todos os poderes que se julgaram perpétuos acabaram consumidos pela sua própria arrogância.
Resta saber se os Estados Unidos aprenderão essa lição antes que seja tarde demais.
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