OS CÃES DA GUERRA e o quase golpe na Rússia
Quando soltamos os cães da guerra perdemos o controlo sobre eles."
Nelson DeMille
Há bastante tempo que ando para escrever um texto, em forma de ensaio (coisa longa e profunda), sobre a natureza dos conflitos armados no atual contexto geopolítico e geoestratégico e também a alteração da forma como esses conflitos são travados e planeados.
Deve chamar-se "As guerras nos tempos da paz" ou, então, se estiver em bom dia, "Como os políticos hipócritas e lingrinhas fazem guerra: guia prático de instruções".
Talvez agora nas férias, no bloco de notas do iPhone, como sempre, enquanto os putos chapinam na piscina...
Mas, resumindo muito o que, um dia destes, vou arranjar tempo de escrever e, apresentando já as conclusões: a diplomacia e a política impuseram tantas regras, limites e condicionantes à guerra que, na génese e em rigor, impossibilitaram a própria guerra.
A intenção é a melhor que pode existir, a vontade a mais nobre que se pode almejar, o intento o mais altruísta que se consegue imaginar e se, de facto, resultassem, nada melhor nos poderia acontecer: um mundo sem conflitos bélicos, sem guerras e sem violência (só falta aqui o "Imagine" do John Lennon como música de fundo!!!!).
No entanto, nós, no contexto da Realpolitik, sabemos que isso é impossível.
Guerras e conflitos armados são uma constante permanente e imutável desde as primeiras civilizações.
De facto, e se formos historicamente rigorosos, não houve um só dia, desde os tempos do Crescente Fértil, que o mundo tivesse em paz plena, em que, em algum ponto do globo, não houvesse uma guerra, uma batalha, soldados a matar e a morrer.
Isto há, pelos menos, 6.000 anos (desde o ano 3.800 aC, data do primeiro "registo" que temos, de uma batalha, na cidade Ur).
E, sendo realistas, assim continuará.
É um facto!!!
E é um facto que temos de aceitar por muito que nos doa e custe: sempre haverá guerra.
Há demasiados interesses, demasiadas ambições, demasiado dinheiro envolvido para que deixe de ser assim.
Não obstante esta triste conclusão, tem-se conseguido grandes conquistas na regulamentação dos modos de executar e travar os conflitos armados.
Não posso deixar de aqui, homenagear o grande Daniel Dunant, fundador da movimento internacional da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho e "pai" da Convenção de Genebra que, de algum modo, tentou pôr limites aos horrores da guerra.
Mas, sabemos, sempre que, por um lado, esses acordos e tratados só valem, de facto, como argumentos e forma de pressão nos campos políticos e diplomáticos e que só se cumprem até que um dos lados estiver na iminência de sair derrotado.
Porque, não obstante leis e tratados, no campo de batalha, a realidade é a mesma desde há milénios: mata-se e morre-se, simplesmente; a sobrevivência é a única prioridade e a vitória o único objetivo.
Sei bem do que falo e, lamento informar que, tudo o resto, é pura retórica.
Ora, tratados, convenções, alianças e convénios tentaram retirar esta natureza intrínseca e endémica aos conflitos armados e intensificaram a pressão no campo diplomático e na política internacional para que a letalidade e supremacia da destruição (que é o que, no fundo, decide uma guerra e distingue o vencedor do vencido) fosse reduzido ao fator quase nulo ou mesmo nulo.
Criaram-se, definiram-se e tipificaram-se, e muito bem, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade, o conceito de genocídio, de direitos humanos, aquilo a que, atualmente, chamamos de "Direito Humanitário Internacional".
Em alguns casos, muito poucos, até se conseguiu sentar os criminosos no banco dos réus e condená-los.
Mas, também sabemos, como prova a história, que leis, tratados e convenções, só se aplicam aos vencidos porque os vencedores nunca cometem crimes de guerra ou crimes contra a humanidade ou, no geral, qualquer tipo de crime em contexto de conflito armado convencional ou não.
Sabemos, e só como exemplo, que clara e inequivocamente, independentemente de ideologias e intenções, que as Forças Aliadas, na Segunda Guerra Mundial, também cometeram crimes de guerra, também cometeram crimes contra a humanidade, especialmente os Soviéticos sob o comando do "Camarada" Estaline, responsáveis por incontáveis campos de "reeducação socialista" na Sibéria, "limpezas" étnicas, massacres de opositores, já para não falar do Holodomor que causou a morte de entre 3 a 5 milhões de pessoas num período de apenas 3 anos na Ucrânia.
No entanto, no banco dos réus do solene tribunal de Nuremberga, nem um só soviético, ou americano, ou britânico foi acusado fosse do que fosse e muito menos julgado ou condenado.
Parece que, em termos de Direito Humanitário Internacional, a vitória implica perdão e amnistia, seja do que for, seja de quem for.
Muito foi feito, algumas coisas muito bem, outras nem por isso, mas tendo a perspetiva irrealista que, um dia, seria possível não haver guerras, que todas as partes estariam de acordo e que os conflitos, esses, seriam a exceção e não a regra.
Os textos fundadores das Nações Unidas expressão bem essa esperança, essa vontade, essa força, linda, bela, humana, mas também irresponsavelmente irrealista, inconscientemente impraticável e perigosamente utópica.
E, no meio de tanta política, diplomacia e boas e utópicas intenções, os militares ficaram com um grave problemas em mãos: sendo as guerras inevitáveis, e, por isso, tendo que ser executadas, como se trava uma guerra em que não se pode matar, em que não se pode destruir, em que não se pode sabotar, em que, em resumo, não se pode lutar com todos os meios para alcançar a vitória?
Como se trava uma guerra sem se fazer a guerra?
E, como sempre, no mundo militar, onde, como se costuma dizer, "não há problemas, mas, apenas, soluções que ainda não foram encontradas", descobriu-se a solução: subcontratou-se a guerra.
Da Blackwater Norte Americana, ao grupo Wagner russo, passando pelo Regimento Azov ucraniano, e mais dezenas e dezenas de outras empresas, designadas PMSCs (Private Military and Security Companies), umas gigantescas, outras quase "unipessoais", agora vende-se as guerras que os Estados não podem nem querem travar.
E pode-se escolher, tipo catálogo, o tipo de conflito, o número de vítimas, de impacto mediático, de grau de escalada e de intensidade, tudo.
Guerra à la Carte: paga-se e tem-se e, tudo isto, sem envolvimentos, sem responsabilizações, sem acusações e, muitas vezes, mesmo "sem conhecimento" e, logo, sem condenações, seja na opinião pública, seja nas instituições internacionais.
E isso traz todo um imenso conjunto de consequências, quase todas negativas, que seria exaustivo, aqui, enumerar (ficará para o prometido ensaio).
No entanto estas empresas, as PMSCs, são a solução "perfeita" para o problema criado: orientadas para os resultados, para a rentabilidade, para o crescimento, trazem à guerra uma eficiência e uma objetividade a que as Forças Armadas das Nações nunca conseguiram atingir.
E a eficiência em guerra tem um nome e só um nome: morte.
Nada separa as "empresas da guerra" dos seus objetivos e do cumprimento dos seus contratos.
Muito, também, porque há todo um conjunto de desinformações e manobras minuciosamente preparadas para camuflar a ação destas empresas.
Não é por acaso que, quase todas essas empresas, senão todas, tem associadas ou a trabalhar em conjunto, as agora também muito famosas PICs (Private Intelligence Companies), verdadeiros "Serviços Secretos" privados e altissimamente eficientes, também estes a soldo e ao dispor dos melhores pagadores.
Por isso atuam sem qualquer tipo de escrutínio, não se enquadram em nenhuma convenção, não estão vinculadas a nenhum tratado.
Legalmente não existem, por isso legalmente não podem ser responsabilizadas, isto é, e em rigor: podem fazer tudo sem temer consequências.
Se o escândalo for demasiado grande (como foi no caso Blackwater em Bagdade, em 2007, no que ficou conhecido como Massacre da Praça Nisour) altera-se o nome, altera-se o domicílio fiscal, "refresca-se" os "testas de ferro", "rolam algumas cabeças" e o negócio continua, cada vez mais encoberto, cada vez mais eficaz, cada vez mais prospero e lucrativo.
E isto tendo como principais clientes as Forças Armadas dos Estados e Nações, muitas delas ditas (e assumidas) como de Direito Democrático.
Antes, as Forças Armadas das Nações e os seus Comandantes, tinham de prestar contas, se mais não fosse à história; eram movidas por um ideal, fosse este bom ou mau; eram impulsionadas por bens maiores, o do patriotismo e do nacionalismo, por mais distorcido que estes fossem.
Mas havia algo mais para além de matar por contrato.
Havia o dever, havia a lealdade, havia a Honra!
Estes novos grupos não têm de prestar contas a ninguém, logo não se condicionam a nenhuma regra ou norma: o seu ideal é somente o dinheiro e a sua lealdade apenas ao lucro.
A guerra de hoje é muito pior que a guerra de há 20 anos.
É o resultado de quando quem quer resolver os problemas, por muito boa intenção que tenha, não conhece as bases e a realidade objetiva desse problema; querem fazer, mas não sabem como se faz, não sabem do que falam, desconhecem o que argumentam, ignoram o que postulam.
Não entendem que, quando se trata de algo tão complexo, intrínseco e extremo como a guerra, as boas intenções estão longe de serem suficientes e a lógica está nos antípodas da realidade.
Porque se a lógica se aplicasse à guerra, simplesmente não haveria guerras, porque a guerra, por definição, é o último recurso dos indivíduos para impor a sua vontade quando todas as lógicas já falharam ou nem sequer existem ou chegaram a existir.
A guerra é quando, perante a falência, inconsequência e incapacidade da força da lógica, sobra, somente e apenas, a lógica da força bruta.
O conflito na Ucrânia está a ser a prova acabada e confirmada de tudo isto.
Vladimir Putin, quando se consciencializou que as suas Forças Armadas estavam longe, muito longe, do que os seus incompetentes e corruptos Generais lhe descreviam e encenavam em teatrais e irrealistas demonstrações, paradas e exercícios, e que, se não tomasse medidas drásticas, ainda perdia um conflito que previa vencer em 3 semanas, segundo a frase do grande Nelson DeMille, soltou os seus "cães da guerra" e, em desespero, o seu pior "cão de fila": Yevgeny Prigozhin.
E, agora, não o consegue controlar, como é óbvio.
Esqueceu-se da lição de Nicolau de Maquiavel: "é o que te está mais próximo que tem a adaga que te vai matar".
Putin, pelo menos e por agora, não morreu, mas foi ferido, isso é certo.
Mesmo ferido, tudo indica, consegui resolver esta questão.
Não sem prejuízos, tais como perder parte importante do seu contingente na Ucrânia (que era assegurada pelo grupo Wagner), criando-se, por certo, cisões no seu núcleo interno, encorajando a oposição, e, claro está, satisfazendo muito os ucranianos.
Perdeu também a proteção aos seus interesses externos, especialmente na África Central e América Latina, de onde radicava grande parte da sua influência internacional e, muito importante, enormes quantidades de fontes de rendimento, especialmente em minerais preciosos de uso industrial e tecnológico e no comercio diamantífero.
Mas, fundamentalmente, cometeu o erro que, por certo, lhe será fatal: mostrou que é atacável, que é acessível, que não está acima de tudo e todos e que não controla tudo e todos.
Putin revelou que não é deus, é homem.
E se os deuses são imortais, os homens não.
E se não se tenta derrubar um deus, já um homem é só uma questão de oportunidade.
Putin mostrou fraqueza e, depois e ainda, misericórdia (vou explicar para a semana, prometo!) e essa demonstração irá encorajar, motivar e desinibir os seus até aqui amedrontados e muito invejosos inimigos (que são bastantes) para tomarem ações, medidas e desencadearem conspirações que, até aqui, nunca ousariam sequer sonhar.
Putin é agora o nadador ferido no tanque dos tubarões esfomeados.
Veremos o que o futuro nos reservará.
Mas, sinceramente, e pela primeira vez, acho que este foi o início do fim de Vladimir Putin e o início de uma nova Rússia.
Será bom? Não sei!
Porque, se no mundo bonitinho e cor-de-rosa da Política Pública, a mudança é sempre boa e a queda de um ditador é sempre um facto a ser festejado, nas sombras da Realpolitik sabemos que o mau presente que temos pode ser preferível ao futuro tenebroso que nos espera e que, quando um ditador cai, não raras vezes, é substituído por um ainda pior.
Mas, como sempre, o futuro será soberano nas suas razões, nas suas realidades e nos seus ensinamentos.
A história é a melhor mestre.
Pena, por vezes, as suas lições, serem tão caras....
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