O Povo quer mesmo a democracia?

07-11-2023

Há bastante tempo que ando a pensar nesta questão?

Quer o povo a democracia?

Quer o povo este regime que se apresenta como absoluto, inalterável, eterno?

Porque, em rigor e em tese, se o povo, livre e democraticamente, decidir o fim da democracia esta tem, em rigor, de se cumprir, extinguindo-se (daria uma boa história para um livro do saudoso Saramago).

E o fenómeno não seria inédito: lembrem-se que o próprio Adolf Hitler foi eleito democraticamente.

E andava eu nestes pensamentos e li, no jornal Expresso, um texto brilhante do Henrique Monteiro.

E como não se faz o que já está muito bem feito, e repetindo também o que já efetuei inúmeras vezes quando encontro "jóias" que coincidem com o que penso e defendo, deixo-vos com este brilhante texto para lerem, mas, fundamentalmente, refletirem.

Porque tudo, até o óbvio, principalmente o óbvio, tem de ser, em permanência, pensado, questionado, debatido.

Democracia, descrença e desilusão

Por Henrique Monteiro

Chegámos a um ponto em que temos de colocar em causa algo tão básico que parece inadmissível: a democracia ainda é a forma de organização do Estado que as pessoas preferem? A liberdade continua a ser o sistema preferido pelos cidadãos? E se não for, o que será?

Escusamos de recordar a velha frase de Churchill sobre o pior de todos os regimes, excetuando todos os outros. Parece-me inteiramente verdade que qualquer outro regime é pior do que o da liberdade e da democracia. Mas se a liberdade e a democracia deixarem de ser atrativos para a maioria das pessoas, que poderemos fazer? Teremos, porventura, colocado demasiadas expectativas neste sistema? Talvez… quisemos "aprofundar" a democracia em tudo e mais alguma coisa — no emprego, no trabalho, na família, na natureza. Progressivamente, passaram-se atestados de democratas a quem defendia a maioria, mas também a quem lutava pela minoria; os defensores da liberdade tanto são os que pugnam por causas meramente pessoais, ou mesmo íntimas, a que o Estado devia ser alheio, como os que defendem que cada qual seja por si, sem que tenhamos rigorosamente nada a ver com a vida dos outros.

O que era uma ideia generosa, que preservava a identidade de cada um respeitando as crenças de todos, foi, progressivamente, transformando-se numa espécie de religião laica, em que a racionalidade crítica deixou de comandar, para serem as emoções, os sentimentos, as reações instantâneas a tomar conta do espaço público. Não há moderação, como escreveu Eduardo Marçal Grilo, que no mesmo texto confessou sentir-se tentado a gritar "Moderados de todo o mundo — Uni-vos!". Acho que subscreveria. Curiosamente, na página a seguir do mesmo jornal onde Marçal Grilo escreveu este grito de alma (que intitulou 'Prova de Vida') outro amigo, Pedro Norton, escrevia: "Deixámos de conversar e isso é perigoso." Também tem razão; a moderação, o caminho do meio, a sensatez, adquirem-se no diálogo, na troca de pontos de vista, no pormo-nos nos "sapatos do outro", na tolerância, e não através da berraria esganiçada de pontos de vista que apenas veem em quem não concorda uma espécie de inimigo, que já nem segue o parâmetro marxista de "inimigo de classe" para se transformar na encarnação do mal.

A liberdade foi avançando e recuando ao longo da História; a democracia, o método, até hoje, mais perfeito de organizar uma sociedade livre, também conheceu vários modelos. Desde Péricles, há 2500 anos, quando afirmava que "o nosso governo chama-se democracia, porque a administração serve aos interesses da maioria e não de uma minoria", até à atualidade, em que, além de não existirem escravos, se entende que a democracia tem de assegurar direitos para as minorias, muito mudou. Incluindo os longos períodos em que não houve democracia nenhuma e liberdade apenas existiu para marginais, excêntricos e detentores do poder.

O ser humano (e hoje escrever Homem como sinónimo já dá discussão) ensaiou muitos métodos. Desde a democracia americana, talvez a mais perfeita até então, às comunas, kibutz, apropriação coletiva dos meios de produção (ou socialismo real), anarquia, etc., muitas foram as formas de se pugnar por mais liberdade. Ainda hoje políticos como Trump (será político?) usam a palavra liberdade para fazerem propostas totalitárias.

No entanto, o que assistimos noutros lados do mundo é à abolição da própria liberdade e da democracia. É a uma imensa desilusão de inúmera gente por os conceitos salvíficos, que lhes foram prometidos, não lhes trazerem uma vida melhor. Talvez nada haja mais parecido com as crises religiosas dos jovens educados numa igreja do que esta diluição da racionalidade e das liberdades democráticas em teorias que delas prescindem em nome da definitiva vitória do bem. Veja-se o que se passa no Médio Oriente, ou na Rússia, ou na China, e — para não falar da Coreia do Norte — na Venezuela, no Vietname, em Myanmar, na Turquia (e vou-me aproximando), na Hungria, na Eslováquia, em Itália. Ou mesmo Espanha, onde o pudor de alianças com separatistas e apoiantes de terroristas cedeu passo à necessidade do poder.

Nos diversos conflitos que assolam o mundo é principalmente isto que está em causa. Chega-se a ter saudades dos tempos em que era apenas o petróleo… O nosso mundo já é (como o era o de Zweig) "o mundo de ontem". É inútil imitá-lo no suicídio, mas a esperança de um mundo melhor acho que voltou a ser algo do 'outro mundo'.

Publicado no jornal Expresso 3 de Novembro de 2023

FOTO de capa ALBERTO PEZZALI/NURPHOTO VIA GETTY IMAGES