O FIM DAS UTOPIAS: QUANDO A POLÍTICA VOLTA AO MUNDO REAL

23-05-2025


Vivemos tempos diferentes. Tempos que muitos não saberiam nomear, mas que todos conseguem sentir.

Há uma mudança no ar, subtil mas evidente, que não se explica por sondagens ou por manchetes.

É algo mais profundo, quase tectónico.

Em Portugal, como em muitos outros países europeus, essa mudança está a refletir-se em algo que há uns anos pareceria improvável: uma maioria de direita superior a dois terços.

Não se trata apenas de um desvio eleitoral pontual ou de um ciclo político comum.

Há algo mais a acontecer.

A direita, tradicionalmente associada à estabilidade, ao conservadorismo e à defesa da ordem estabelecida, reinventou-se. Apropriou-se de uma linguagem e de um estilo de atuação que, durante décadas, estavam reservados à esquerda mais combativa: o populismo, a denúncia do sistema, a promessa de ruptura.

Isto, por si só, já seria notável.

Mas há mais.

Há uma transferência, quase silenciosa, de bases eleitorais.

Aqueles que durante décadas eram o pilar da esquerda – os trabalhadores, a pequena classe média, o cidadão comum com preocupações muito concretas – começaram a olhar para a direita com interesse, até com esperança.

E alguns, cada vez mais, com convicção.

Porquê?

Porque a esquerda mudou.

E nem sempre para melhor.

Uma parte significativa da esquerda deixou de ser movimento e passou a ser clube. Clube de ideias, de causas, de princípios – sim –, mas também de privilégios e de uma certa superioridade moral que a afastou do quotidiano das pessoas.

A chamada "esquerda caviar" tomou o palco e ocupou-o com gosto.

Tornou-se mais preocupada com linguagem do que com pão, mais interessada em debates conceptuais do que em listas de espera na saúde ou nas contas da mercearia.

E isso tem um custo.

Não estou a dizer que essas causas sejam irrelevantes.

Não o são!

A justiça social, os direitos das minorias, a defesa do ambiente são essenciais.

Mas há uma diferença entre dar voz às causas e viver nelas como numa bolha.

Quando a política se torna um exercício de autoafirmação moral e ideológica, perde-se o contacto com o que realmente interessa a quem está no fim da linha à espera do autocarro.

A direita, por sua vez, soube ler esse vazio. E ocupá-lo.

Mesmo quando isso significou ceder a discursos mais radicais, menos polidos, mais emotivos.

Passou a falar a linguagem de quem está farto de ser ignorado.

E por isso está a vencer. Em Portugal. Em França. Na Alemanha. Em Itália. No Reino Unido. Em quase toda a Europa.

Alguns dirão que isto é perigoso. Que estamos a assistir a uma deriva populista de direita que poderá ter consequências imprevisíveis.

E talvez tenham razão.

Mas será justo ignorar a outra metade do problema?

Será que não é igualmente perigoso quando uma parte significativa da população se sente abandonada, ignorada, desrespeitada pelas elites políticas que se reclamam da moral e da justiça, mas que vivem num mundo onde nunca falta dinheiro para o sushi ou para as conferências em hotéis de quatro estrelas?

Talvez o que estejamos a viver não seja apenas uma mudança de cor política, mas uma mudança de paradigma.

Um tempo em que as ideologias, como as conhecíamos, estão a perder relevância.

Em que os eleitores já não procuram grandes narrativas, mas pequenas soluções.

Não querem utopias. Querem resultados!

Pode parecer triste, até redutor. Mas é profundamente humano. Porque antes de qualquer sonho coletivo, há contas para pagar.

E isso, quer gostemos ou não, é o novo motor da política.

Estamos a entrar num tempo em que as ideias terão de se submeter à prova dos factos. Em que os políticos serão avaliados não pelo que dizem, mas pelo que fazem. Um tempo em que o voto já não será um voto de fé, mas um voto de expectativa prática.

Não é que os valores tenham morrido.

Eles continuam lá.

Mas agora precisam de ter utilidade.

Têm de servir para alguma coisa concreta.

Os cidadãos já não estão disponíveis para se sacrificarem por slogans.

Querem saber como vão resolver o problema da creche, do centro de saúde, do custo da renda.

E esta exigência é transversal. Tanto à esquerda como à direita. Quem não perceber isso ficará para trás. Será substituído. Esquecido.

Claro que haverá resistências.

Haverá sempre os que continuam a acreditar nas grandes causas e nos grandes discursos. E isso não é mau. É importante haver vozes idealistas. Mas já não bastam.

A esquerda terá de reaprender a ser popular. Não no sentido mediático, mas no sentido literal: estar com o povo. E isso significa, às vezes, descer do púlpito ideológico e ir ao supermercado. Sentir a ansiedade de quem já não consegue comprar o que comprava há um ano. Ou de quem teve de escolher entre pagar a renda ou comprar os livros escolares.

A direita, por seu lado, terá de aprender a governar esse descontentamento que soube captar. Porque uma coisa é ganhar eleições com promessas fortes. Outra, bem diferente, é corresponder a essas promessas com realismo, equilíbrio e competência.

Estamos, pois, num tempo novo. Em que não basta ter razão. É preciso ter solução. Em que não basta falar bonito. É preciso fazer bem. Em que a política real regressa, não como cinismo, mas como necessidade.

Veremos quem saberá estar à altura. Quem terá humildade para reaprender e coragem para se comprometer. E quem se perderá, encantado pela sua própria retórica, nos salões das suas certezas.

Este novo ciclo não será marcado por ideologias fechadas, mas por causas abertas. Não por fidelidades cegas, mas por exigências claras. E isso é um desafio tremendo para os partidos tradicionais, mas também uma oportunidade.

O tempo da demagogia fácil pode ter terminado. E com ele, talvez, também o tempo das ilusões reconfortantes.

Entramos num tempo de maturidade política. Duro, mas honesto.

Será, talvez, o início de uma política menos emocional, menos teatral, mais pragmática. Uma política onde se volta a perguntar: "O que posso fazer por ti?", em vez de "Vê como sou moralmente superior a ti".

Não há garantias de sucesso. Mas há uma certeza: quem continuar a fazer política como se vivêssemos em 1995 ficará para trás.

O mundo mudou!

As pessoas mudaram!

E os votos também!

Portugal, neste contexto, é apenas mais uma peça de um puzzle maior.

Mas é uma peça importante.

Porque tem uma tradição democrática sólida, uma sociedade civil atenta, e uma população que, apesar de tudo, ainda acredita que a política pode servir para alguma coisa.

O que está a acontecer não é uma aberração. É um sintoma. Um sinal claro de que algo precisava de mudar. E está a mudar.

Resta saber se os protagonistas políticos saberão estar à altura dessa mudança.

Por agora, não há espaço para fanatismos. Nem para dogmas.

Há espaço, sim, para trabalho sério, honesto e consequente.

E talvez isso, por si só, seja uma revolução.

Uma revolução sem cartazes. Sem bandeiras. Mas com consequências profundas.

O tempo das utopias pode ter passado.

Mas o tempo da política real – com tudo o que isso implica de exigente, imperfeito e humano – está de volta.

E isso, para mim, já é um começo.