METADADOS: O FIM DA LIBERDADE?

17-03-2024


Os Metadados tem gerado muita polémica na Europa, por toda a comunicação social ocidental assim como pela comunidade académica e mesmo entre os juristas e políticos, legisladores e frequentadores de mesas de café.

Para quem não esteja muito familiarizado com o conceito metadados são todos os dados digitais que se relacionam e complementam um dado em si e que são produzidos no processo de geração do dado, dotando esse mesmo dado de informações que o caracterizam e definem em múltiplos e quase infinitos aspetos. 

Por exemplo, quando efetuamos uma chamada telefónica fica registada a chamada telefónica e de que número para que número foi efetuada sendo isso, o dado. Metadados são a duração da chamada, a localização do emissor, a localização do recetor, a quantidade de dados transmitida nessa chamada, etc, etc, etc..

Isto, claro está simplificando MESMO muito a definição e o conceito, muito bem mais complexo.

Este sistema de obtenção de dados foi criado e desenvolvido para ajudar as empresas digitais a conhecer melhor os hábitos de consumo dos seus clientes e, assim, criar produtos e serviços que mais se adequassem às nossas necessidades e hábitos.

Atitude até muito nobre e útil!

Mas todos vocês estão já a pensar no uso que se pode dar a esses tipos de dados se esse uso for motivado por princípios menos legítimos ou até hostis.

É literalmente o Bigbrother antevisto por George Orwell no seu famosíssimo livro 1984.

Implica algumas empresas ou entidades saberem, sempre e constantemente, onde estamos, o que estamos a fazer, que música estamos a ouvir, que filme estamos a ver, com quem falamos e quanto tempo, o que compramos, onde gastamos o nosso dinheiro, com quem, em quê e quanto, etc, etc, etc.

Literalmente, com a proliferação dos dispositivos digitais, com a nossa crescente dependência desses mesmos dispositivos e com a 5ª fase da Internet, isto é, a internet das coisas, ou IoT, em que tudo está ligado em rede, literalmente é possível saber tudo o que fazemos a todo o momento.

Não é exagero dizer que o processamento dos Metadados sabem mais sobre nós do que nós sabemos sobre nós próprios.

Sabe onde comprou a sua última escova dos dentes?

Se não sabe garanto-lhe que os Metadados sabem, e quanto custou, e exatamente a que horas a comprou, e qual é a cor, a densidade, o preço de produção, a margem de lucro assim como o nome da operadora ou do operador que a registou.

Acrescente-se a tudo isto a nossa própria contribuição, embora, a maior parte inconsciente e inocente, de colocarmos, em todas as redes sociais, onde estamos, o que comemos, onde vamos passar férias, onde vamos almoçar e jantar, com quem e o quê, etc., etc. e etc..

Colocamos a nossa vida na rede, literalmente, inconscientes, muitas vezes, dos riscos a que nos expomos e às manipulações a que nos sujeitamos.

O famoso Escândalo de dados Facebook–Cambridge Analytica, em 2014 veio expor somente um pouco o que pode ser feito com os Metadados recolhidos da nossa "vida digital".

E o escândalo foi já há 10 anos.

Muito a "Engenharia Social" evolui desde então, tendo agora como grande aliada a massificação da Inteligência Artificial.

Literalmente, empresas e organizações, ao definir o que vemos, quando vemos e quanto vemos, condicionam, completamente, a perceção que temos da realidade.

De facto, e pensando bem, nós só sabemos aquilo que vemos e que nos é mostrado desconhecendo tudo o resto.

É a famoso processo da formação da consciência.

Só nos é consciente aquilo de que detemos consciência.

Mas, se até agora, este processo era natural, eramos nós que, descoberta em descoberta, de curiosidade em curiosidade, umas vezes intencionalmente, outras por acaso, umas formalmente, como na escola, por exemplo, outras informalmente, como no seio da família e do grupo de amigos, íamos construindo a nossa própria consciência.

Agora, essa formação pode ser fortemente condicionada pois grande parte dessa consciência  vamos busca-la ao ecrã do nosso telemóvel.

Somos aquilo que vemos, ouvimos e aprendemos e todos esses processos estão agora centrados em dispositivos eletrónicos em detrimento do convívio social e das estruturas tradicionais onde, como havia o elemento humano, havia argumentação, discussão, contraposição, em suma, dialéctica.

Assim controlando o que vemos, ouvimos e aprendemos controla-se quem somos e logo como pensamos.

E, deste modo, essas empresas e organizações podem condicionar, fortemente, em que acreditamos, o que vamos comprar, o que vamos fazer, em quem vamos votar...

É, de facto, assustador.

Mas, como em tudo nesta vida, os Metadados não são só malefícios.

Para além de, e de facto, continuarem a desempenhar o seu objetivo inicial de proporcionar às empresas que desenvolvam produtos e serviços mais adaptados às nossas necessidades (que, por vezes, nem nós temos consciência), possibilita, também, por exemplo, às autoridades ter acesso a um conjunto enorme de dados que podem permitir um combate muito mais eficiente e rápido ao crime, ao terrorismo, ao radicalismo e a outros fenómenos que põe em causa a segurança de todos nós e daquilo em que acreditamos e defendemos.

Mas foi aí que as coisas, em especial, na Europa, geraram controvérsia?

Pode o Estado e as autoridades ter acesso aos Metadados?

Podem esses Metadados serem utilizados para fins judiciais, para investigações criminais, são admissíveis como prova em tribunal?

Os fantasmas da ditadura, do controlo dos cidadãos pelo Estado, da tirania, despertaram com todo o seu fulgor!

E o debate iniciou-se!

A constitucionalidade foi posta em causa, a ética também.

Em alguns países, como por exemplo Portugal, a utilização foi legalizada, noutros, como Itália, ainda não...

Mas, em suma, podem?

Na minha opinião sim!

Em primeiro lugar pela própria essência do "Contrato Social" que está na base do nosso sistema. Concordamos, segundo esse contrato, em abdicar de parte dos nossos direitos individuais para que o Estado posso promover o interesse do coletivo, protegendo-nos e garantindo os nossos direitos já não como indivíduos, mas como cidadãos. 

Ora, se a utilização dos Metadados for devidamente regulamentada e a sua utilização estiver claramente definida na Lei, indicando-se quem, como, porquê e em que circunstancias pode ou não ser acedidos só vejo vantagens na sua utilização por parte das autoridades.

Porque também não nos podemos esquecer que, ética e moralmente, só podemos apelar para o respeito dos nossos direitos, liberdades e garantias quando, nós próprios, respeitamos esses mesmos direitos, liberdades e garantias nos outros. 

Ora, alguém que comete um crime viola esse compromisso, pois o crime é, precisamente, quando violamos, por ação ou omissão, os direitos de outrem. Logo, perde o direito moral de apelar a que a ele se aplique os direitos que o próprio violou.

Mas o nosso sistema orgulha-se, e bem, de não seguir esse principio básico e de, mesmo àqueles que violam a Lei, e, principalmente a esses, a aplicar rigorosamente, conferindo-lhes direitos de modo a preservar a sua dignidade e, também, óbvio, a sagrada presunção da inocência, o direito à defesa e a exclusão do ónus da prova.

Então, deve-se, na minha opinião, chegar a um consenso, como tantas vezes já aconteceu no nosso sistema e que é apanágio das sociedades plurais e democráticas.

A utilização dos Metadados deve ser permitida, tanto para empresas como para Estados, porque, sem dúvida nenhuma, para todos traz vantagens (menos para os criminosos e prevaricadores), mas essa utilização deve ser devida e claramente regulamentada e legislada com  possibilidade de, a todo o momento, ser monitorizada, auditada e fiscalizada por entidade especializada, idónea e independente.

Porque, vamos ser sinceros e realistas, como sempre aqui no Realpolitik: os Metadados são demasiado úteis, podem gerar um proveito imenso, vantagens enormes para não serem utilizados.

O valor é demasiado alto e as possibilidades demasiado vantajosas para a utilização se tornam desvantajosa, sejam quais forem os obstáculos e as perdas que possamos tentar aplicar ao seu uso.

Por isso, temos uma certeza: os Metadados serão utilizados.

Se não for legalmente, será ilegalmente, como já se viu.

Assim, mais vale permitir mediante condições razoáveis (e, neste aspeto, a razoabilidade é fundamental) do que pura e simplesmente proibir pois, sabemos por experiências múltiplas passadas, que a excessiva e não razoável regulamentação conduz ao aumento da infração.

O legislador terá de ter a sensibilidade e o bom-senso de regulamentar e limitar o uso dos Metadados mas sem retirar o proveito do seu uso tanto a empresas e organizações como ao Estado.

Tem de se garantir a defesa de direitos, liberdades e garantias, mas interferindo o menos possível no proveito, na vantagem e no valor desses ativos.

É a obtenção deste equilíbrio delicado e ténue que será o grande desafio dos legisladores.

Esperemos para ver o resultado de todos os diplomas que estão a ser elaborados, apreciados e discutidos por toda a Europa.

Mas, além de tudo isto e para além de tudo isto, existem dois aspetos quase óbvios, comezinhos e vulgares que vos queria referir.

Em primeiro lugar é o velho ditado de "quem não deve não teme".

Se formos cidadãos respeitadores da Lei e pessoas respeitadoras do nosso semelhante nada tememos em relação ao que saibam ou não, por onde andamos ou o que fazemos, desde que, claro, isso não se torne em devassa e não caia no domínio público, porque, isso sim, já atenta contra a privacidade.

Por isso, se os Metadados só forem utilizados quando houver razão para isso e um propósito definido e legitimo não vejo qualquer problema na sua utilização.

Outro aspeto é: se quase toda a gente anda, voluntaria e explicitamente, a dizer tudo sobre tudo o que faz, que legitimidade tem, depois, de invocar evasões de privacidade e direito aos dados?

Como sempre é preciso, nas nossas comunidades, educação para a cidadania, sentido de comunidade, consciência que ter direitos implica, sempre e sem exceção, ter deveres e que, em Estados de Direito Democrático, o interesse do coletivo se sobrepõe, sempre, ao interesse do individuo.

É a consciência das bases do nosso sistema que, a muita gente, falta saber e entender, e como não sabem nem entendem, protestam, revindicam, contestam, desconhecendo, ignorantes e arrogantes, que aquilo que querem destruir é precisamente o que possibilita que tenham o direito de protestar: a Liberdade baseada no contrato social.

Porque os cidadãos não podem ter medo do Estado porque o Estado somos todos nós.

E quando temos medo de nós próprios, seja consciente ou inconscientemente, muito mal está o estado dos Estados.


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