LEÃO XIV: o homem novo para a nova Igreja

A eleição de Robert Francis Prevost, agora Leão XIV, é um marco a todos os níveis.
Digo-o com clareza e convicção.
Um marco político, eclesial, simbólico, cultural.
Um marco que ninguém antecipou — e que, precisamente por isso, merece ser profundamente interpretado.
Não me interessa, aqui, fazer a sua biografia: já está feita, refeita e bem tratada por jornais, canais, especialistas e comentadores.
Também não me detenho na escolha do nome, com a clara evocação de Leão XIII e da genial encíclica Rerum Novarum. É evidente demais para merecer mais palavras.
Prefiro ir ao âmago do gesto.
Porque ele é gesto. Profundo. Estrategicamente calibrado. E radicalmente surpreendente.
Primeiro, o mais óbvio: os cardeais elegeram um norte-americano. E, com isso, tiraram a Donald Trump um estatuto que sempre cultivou: o de norte-americano mais poderoso e influente do mundo.
Trump deve ter-se engasgado com o pequeno-almoço.
Afinal, um compatriota, mais humilde, mais culto, mais profundo, mais humano, mais universal, mais tudo — tornou-se Papa.
Tornou-se símbolo. Tornou-se referência.
E Trump, que tudo quer controlar, não pode controlar a Igreja.
Esse é o primeiro sinal.
Um murro na mesa, subtil mas cirúrgico, do colégio cardinalício para a Casa Branca.
Que fique claro: a Igreja não se deixará instrumentalizar.
E menos ainda se deixará amordaçar.
Elegeu um Papa que, por ser americano, fala a mesma língua.
Mas por ser universal, fala com outra alma.
Depois, há o poder moderador que o Papa agora detém.
Um poder simbólico, mas não inócuo.
Ter um compatriota como chefe da Igreja Católica é um travão implícito a muitas pulsões populistas.
Trump e os seus acólitos saberão que há alguém que os poderá confrontar no mesmo palco, mas com força moral, com muito mais credibilidade.
A crítica papal é uma das mais temidas no plano internacional.
E Trump, com toda a sua vaidade, não vai querer ser o alvo direto de um Papa que conhece os bastidores da América como ele próprio — mas com muito mais sabedoria e sem os delírios narcisistas.
As relações entre os Estados Unidos e o Vaticano vão ter de ser geridas com pinças.
E isso é ótimo.
Porque quando o poder é grande demais, precisa de quem o vigie.
O Vaticano é agora uma espécie de espelho: devolve à América uma imagem mais exigente, mais justa, mais comprometida com o bem comum.
Mas Leão XIV não é apenas o Papa dos Estados Unidos.
É o Papa do mundo.
E isso está inscrito no seu percurso pessoal.
É o primeiro Papa com dupla nacionalidade: peruana e norte-americana. Isso não é um acaso, é um sinal dos tempos. Da mestiçagem. Da ponte. Da síntese. Da integração.
É um homem com raízes italianas, espanholas e francesas. Nascido nos Estados Unidos. Trabalhou intensamente no sul global (para onde se estão a transferir os centros de decisão geopolíticos e geoestratégicos com os BRICS), conhece o norte e o sul do planeta com a mesma naturalidade com que percorre os corredores do Vaticano.
Esse é o segundo marco: a sua universalidade.
Num mundo fragmentado, onde os discursos identitários se extremam, a Igreja aponta um rumo de reconciliação.
Elege alguém que pertence a muitos mundos. Que não tem medo de ser híbrido. Que encarna a mundialização da fé sem a descaracterizar.
Depois, há um terceiro ponto que não posso deixar de sublinhar: a racionalidade.
Leão XIV é um racionalista. Um agostiniano. Um homem da razão, da inteligência, do pensamento estruturado. Um matemático, com doutoramento em Direito Canónico, que cruza a precisão da ciência com a profundidade da fé.
Não é frequente.
Não é vulgar.
Não é ligeiro.
Estamos perante um homem que serve comida aos pobres, que anda a cavalo nos pampas, que visita comunidades esquecidas — e que, no mesmo dia, discute filosofia, diplomacia e teologia com cardeais e embaixadores.
É esta duplicidade — ou melhor, esta integração — que o torna fascinante: um Papa da razão e da compaixão.
Um Papa que sabe organizar, negociar, estruturar.
Mas também um Papa que sabe escutar, acompanhar, sentir.
O seu trabalho no Dicastério para os Bispos é prova disso: discreto mas eficaz. Transformador sem ser ruidoso.
Um trabalho de base, de construção, de visão.
E, por isso, Leão XIV é alguém que não se limita a reagir: Age. Planeia. Propõe.
Nunca acreditei que os cardeais tivessem a coragem de eleger um norte-americano.
Achei que os preconceitos seriam maiores do que a esperança.
Enganei-me!
E fico feliz por me ter enganado.
A coragem venceu.
O risco venceu.
A esperança venceu.
E não é todos os dias que isso acontece.
Muito menos no conclave.
Não sou crente, como sabem.
Mas, se fosse, diria que o Espírito Santo esteve particularmente atento neste conclave.
Fez o seu trabalho. Escolheu bem. Escolheu à frente do tempo. Escolheu com ousadia.
Há algo de profético nesta eleição.
Não no sentido místico.
Mas no sentido político, social, humano.
A Igreja diz-nos que não quer ser uma máquina envelhecida, fechada em Roma.
Quer ser um corpo vivo, atento ao mundo, disposto a escutar e a dialogar.
Leão XIV é um sinal claro dessa vontade.
Uma vontade de renovação que não destrói. Uma vontade de abertura que não relativiza. Uma vontade de verdade que não se impõe com arrogância, mas com presença.
Ele não vai agradar a todos.
E ainda bem.
Os papas consensuais costumam ser esquecíveis.
Leão XIV, parece-me, não será.
Tem carisma, mas não é teatral.
Tem cultura, mas não é elitista.
Tem fé, mas não é fanático.
Tem experiência, mas não é cínico.
Tem força, mas não é autoritário.
Vai provocar. Vai incomodar. Vai desafiar.
Mas também vai inspirar, unir, esclarecer.
E essa é a missão maior de um Papa num tempo como o nosso: ser farol, não muralha.
Não sei que decisões tomará. Não sei que reformas ousará. Mas sei que não vai ser um mero gestor da Igreja.
Vai ser um pastor, um pensador, um diplomata e um estratega.
É cedo para o avaliar.
Mas é tarde para ignorar a força da sua eleição.
O mundo mudou um pouco quando os cardeais disseram "Leão XIV".
Mudou no olhar que temos sobre o futuro.
Mudou na forma como a fé se pode articular com a razão, com a justiça e com a paz.
Num tempo de medos, populismos e cinismos, um Papa como Leão XIV é uma lufada de ar fresco. Um convite à maturidade. Um apelo à responsabilidade.
Não vai resolver todos os problemas.
Mas vai, com certeza, mudar o tom das perguntas.
E isso já é muito.
É um Papa que sabe onde está. Sabe o que representa. E sabe que o mundo está à espera de liderança moral, não apenas de doutrina.
Se a Igreja quiser escutar o tempo — e não apenas repetir fórmulas — então Leão XIV tem tudo para ser uma figura marcante.
Que não se iludam os que pensavam controlar o Vaticano. Este
Papa não se deixa usar.
E isso é, por si só, um sinal de esperança.
A Igreja tem um novo rosto. E o mundo, um novo interlocutor.
Trump, esse, vai ter de se habituar.
E nós, crentes ou não, faremos bem em prestar atenção.
Porque quando a fé se encontra com a inteligência, algo de sério pode acontecer.
E talvez — quem sabe — o futuro não esteja tão perdido como às vezes parece.
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