KAMALA HARRIS E O FIM DAS IDEOLOGIAS
Nas últimas eleições nos Estados Unidos da América, realizadas a 5 de novembro de 2024, não só Donald Trump venceu como Kamala Harris perdeu.
Porque, de facto, como se estuda em geopolítica, é possível ganhar umas eleições sem as vencer (quando se ganha não por mérito próprio, mas pela "não qualidade" do adversário), ou, então, pode-se perder umas eleições sem ser derrotado (quando ambos os oponentes são bons, mas um consegue capitalizar melhor o eleitorado).
Porque perdeu Kamala Harris para alguém como Donald Trump?
Em primeiro lugar, Kamala perdeu por ser quem é, não sendo, nem de perto nem de longe, a melhor candidata democrata para ocupar o cargo e disputar estas eleições, ainda mais com alguém com o perfil de Donald Trump.
Falta-lhe capacidade de comunicação política, força "galvanizadora", não cria empatias fortes, não personifica o que acredita, isto é, não consegue gerar confiança suficiente para que seja possível acreditar no que diz.
Depois, cometeu um erro "de palmatória" na política: tentou conquistar todas as "franjas" de eleitorado.
Não soube identificar o eleitorado que nunca seria dela, o eleitorado que sempre seria dela e o eleitorado "indeciso". E era neste, e só neste, que devia apostar tudo.
O que fez?
Tentou chegar a todos!
Era contra as armas, mas tinha uma Glock em casa; apoiava o aborto, mas era "pró-vida" e alinhada com os católicos; era a favor da imigração, mas também do maior controlo fronteiriço.
Kamala nunca se vinculou a nada, nunca se comprometeu com coisa nenhuma, em nada era a favor e em nada era contra.
Ora, a indefinição na política paga-se muito caro e, como se diz em linguagem popular, "quem tudo quer, tudo perde".
E Kamala perdeu!
Também não demonstrou, ao longo de quatro anos como Vice-Presidente e mesmo durante a campanha, capacidade ou competências que indicassem competências de realização, concretização, resolução de problemas, iniciativa, proatividade ou dinamismo.
Pensa muito, debate muito, tem muitas boas intenções, mas… depois… nada.
Internamente, não resolveu a crise económica, os problemas de saúde, de assistência social, de insegurança.
Em termos de política externa, durante o seu mandato, começou a guerra na Ucrânia e continua; começou a guerra na Faixa de Gaza e continua; intensificou-se o conflito com o Irão, com os Huthis do Iémen… nada se resolveu, muito pelo contrário.
Essa incapacidade de fazer acontecer, de realizar, de concretizar é fatal em política, especialmente quando o adversário é Donald Trump, que, para o bem ou para o mal, é um "do it man".
Por isso, antes de mais, Kamala não era a pessoa certa para vencer estas eleições e, depois da caótica decisão de Joe Biden de insistir, quase até "à última", na reeleição, deixando apenas 17 semanas para Kamala se afirmar, convenhamos, pouco ou nada havia a fazer.
Kamala Harris é, inegavelmente, uma excelente senhora, uma jurista competente, uma defensora incansável da justiça, da democracia e da igualdade em todos os seus aspetos.
Mas isso, atualmente, não chega…
Porque as razões base e profundas da derrota de Kamala Harris vão muito além dela, do partido e até mesmo do país.
O que Kamala, o Partido Democrata e muitos políticos por esse mundo fora ainda não entenderam (embora as evidências sejam muitas e claras) é que a época da "política das causas" terminou.
O eleitor comum atual é muito diferente do eleitor de princípios ou meados do século passado, quando surgiram as grandes correntes ideológicas da política "moderna".
O eleitor atual vê a democracia como um dado adquirido (embora ache que funciona mal), a liberdade como uma certeza (embora ache que está condicionada) e o Estado de Direito como um facto (embora com muitas falhas).
Também já não se revê em causas que, embora existam e sejam meritórias e urgentes, como o ambiente, a igualdade de género, a discriminação racial e étnica e muitas outras, foram feitas "reféns" de movimentos woke radicais e extremados que pedem o impossível e exigem o inalcançável, pondo, não raras vezes, em causa a ordem instituída e a estabilidade do sistema.
Ora, atualmente, para aderir e defender uma causa, entra-se num confronto de extremos, usando meios e métodos que roçam o terrorismo, num crescendo tal que o eleitor moderado, naturalmente, se afasta ou até acaba por se opor à causa que, num primeiro momento, apoiava.
Assim, sem ideias congregadoras ou causas unificadoras que sustentem a opção por uma ideologia, resta ao eleitor atual enveredar pela "política real".
E esta política é egoísta, calculista, "interesseira", isolacionista e narcisista.
Gera eleitores que colocam o seu interesse individual à frente do coletivo, o seu bem-estar acima do bem-estar dos outros, o seu ego acima de qualquer ideal ou causa.
O que importa, agora, é que cada um tenha um emprego, uma casa, um carro, comida na mesa, roupa no corpo e a possibilidade de educar os filhos e, se possível, um pouco de lazer também, além, claro, de paz, tranquilidade e segurança.
E que tudo isso não seja uma promessa, um plano, um futuro, um ideal.
Que seja agora, já, imediatamente, independentemente das causas, dos efeitos, das consequências, dos custos futuros ou das desigualdades e discriminações que possam causar!
O que importa é o "eu" e o "agora".
É a "ideologia" do "cada um por si e ninguém por todos".
Os outros e o futuro são algo vago, conceitos intangíveis e distantes que mais vale ignorar.
Por isso Donald Trump venceu, por isso Kamala Harris perdeu.
Porque Kamala fez a política do "ontem" e do "amanhã", Trump fez a política do "hoje".
E os Estados Unidos da América não são a exceção, muito pelo contrário.
O Socialismo, o Comunismo, a Social-Democracia, o Liberalismo, a Democracia Cristã, o Fascismo e o Nacional-Socialismo são, hoje, monólitos sem sentido ou significado, alguns deles com mais de um século, podres, desacreditados e descredibilizados, incapazes de se defenderem no "tribunal da história", explorados, desgastados e pilhados pelos "profissionais da política" que, durante décadas, dessas ideologias se fizeram valer para seu interesse próprio.
Morreram as ideologias que promoviam o coletivo, e impera agora, única e exclusivamente, o interesse do indivíduo, o populismo fácil, as soluções "milagrosas", a demagogia, a utopia e a ignorância.
As nações e os sistemas políticos deixaram de ser coletivos congregados em redor de um mesmo ideal e de um mesmo património cultural para serem a soma simples e redutora de indivíduos isolados que partilham um mesmo território, cada um tentando garantir a sua vontade, o seu interesse, a sua ambição e, mais, disposto a tudo para o obter e sem olhar a meios para atingir os seus fins.
Antes as nações edificavam-se porque se acreditava (e bem) que "o todo é melhor que a soma das partes". Hoje o todo é muito inferior à somadas suas partes porque essas mesmas partes não querem fazer parte do todo.
Por isso Kamala perdeu, e perderão todas as "kamalas" que tentarem vencer pelos ideais e pelas causas, porque, como se sabe, não se pregam ideais a estômagos vazios nem se promovem causas onde domina o desespero, a desesperança e a incerteza.
Nesses ambientes, vencerão os "trumps" deste mundo através da utopia, da demagogia e do populismo.
As ideologias morreram!
Um dia, tarde demais, quase por certo, todos entenderão que dependemos uns dos outros e que a cooperação não é um ideal, mas um imperativo natural para a sobrevivência e bem-estar.
Será tarde demais, e a culpa será tanto dos que esqueceram os valores da democracia e da união como dos que permitiram que esses valores fossem esquecidos.