GAMBITO DE DAMA e a jogada arriscada de Putin

05-07-2023

O meu filho Afonso, acho que com 3 anos, nos seus primeiros passos no xadrez. Foi ele que, vendo as notícias da Rússia, me disse "O Putin esta fazer um Gambito de Dama" Ficam aqui os créditos ao autor da expressão.


"Gambito de Dama ou de Rainha é uma jogada feita pelas peças brancas logo no início da partida. Nela, o peão da rainha é sacrificado para se conquistar o estratégico domínio territorial do meio do tabuleiro."

O Grande livro do Xadrez

Álvaro Pereira


Einstein afirmou que o tempo é relativo.

E estava certo, claro!

Cada um de nós mede o tempo à sua dimensão.

Isto para dizer, apenas, que a escala de tempo que aplicamos à vida de cada um de nós, simples seres finitos e mortais, não é, nem de perto nem de longe, a escala que se aplica na política e na história das Nações, já para não falar na escala natural e cósmica.

Para um indivíduo, 31 anos é muito tempo, mas, para uma Nação e para um sistema político, é apenas um "ontem" ainda muito recente.

E, nesta já longa questão russa, muitos se esquecem que todo o bloco soviético, com mais de 70 anos e que dominava, com mão de ferro, o maior país do mundo, "somente" ruiu há, precisamente, 31 anos.

Isto traz imensas implicações.

Uma delas, e só como exemplo, é que a quase totalidade dos oficiais de topo das Forças Armadas russas foram formados (quase que diria "formatados") nas "escolas" soviéticas, que, na sua longa agonia, eram o expoente máximo da corrupção, do clientelismo e da incompetência. Todos esses então jovens oficias, tiveram de sobreviver, evoluir e prosperar, primeiro, na "época Yeltsin" e a todo o caos que a caracterizou, quase esquecida, mas em que a Rússia, literalmente, faliu e, depois, à ascensão da "época Putin", do poder absoluto dos oligarcas, da influência incontestada dos serviços de informações russos, que, embora agora se chamem SVR, continuam a ser o KGB de sempre.

Estes oficiais são o resultado de todo um período de absoluta insanidade, em que tudo era possível (chegou-se a vender submarinos no "mercado negro" a narcotraficantes colombianos) em que só os mais astutos sobreviveram.

Poucos tem disso consciência, mas na Rússia dos últimos 31 anos, sobreviver (no sentido literal e absoluto do termo), desde o simples cidadão ao mais rico oligarca, é uma conquista diária, difícil e que exige esforço, engenho e muita, mas mesmo muita frieza e uma completa impiedade.

Exemplo disso é o celebre caso de Mikhail Khodorkovsky, simplesmente o oligarca mais rico da Rússia até ao momento em que desafiou Putin e acabou com a sua fortuna confiscada e uma condenação de 10 anos por evasão fiscal numa prisão siberiana (recomendo o documentário Citizen K, disponível na Prime Vídeo).

Os custos dessa sobrevivência são a predominância da aparência, do protagonismo, da luta de bastidores, de influência e, também, da traição, da conspiração, do logro, do engano, da mentira e, não raras vezes, da coação, da chantagem, do rapto e do homicídio.

O importante é sobreviver e para sobreviver tem-se de estar no topo da "cadeia alimentar", custe o que custar, custe a quem custar.

E as Forças Armadas Russas são o resultado desta história e são lideradas por estes oficiais.

Por isso só alguém muito distraído ou alheado destas "lides" se espanta com os consecutivos falhanços e derrotas dos russos mesmo perante um inimigo tão fraco e debilitado como a Ucrânia (onde, convenhamos, se passa exatamente o mesmo).

As Forças Armadas Russas são o principal inimigo de si próprias. Não precisam de ninguém que as combata. Elas auto-aniquilam-se. E o mesmo se passa com os Ucranianos (também eles ex-soviéticos). 

Por isso esta guerra é o que é: ninguém vence porque ninguém sabe como o fazer.

Desta factual realidade surge a necessidade de empresas como o Grupo Wagner.

Sem hierarquias, sem patentes, em que o mérito se premeia, em que o sucesso se mede em resultados, sem processos disciplinares por antipatia nem promoções por simpatia, sem complexos códigos de conduta e procedimentos como nas Forças Armadas regulares, tornam-se, livres de "vícios" e "esquemas" quase seculares, altamente eficientes.

E era isso que o Grupo Wagner era porque foi assim criado pelo Vladiimir Putin e pelo seu amigo de longa data, Yevgeny Prigozhin.

Por isso, quando a criação se revoltou contra o seu criador e Yevgeny Prigozhin literalmente se "fartou" de ter de "aturar" os incompetentes e inábeis Generais russos (e com toda a razão, diga-se), Putin soube, de imediato, uma coisa: nunca as Forças Armadas Russas seriam capazes de vencer o Grupo Wagner.

A cidade de Moscovo seria tomada em poucos dias e um banho de sangue ia acontecer, inevitavelmente.

Putin ia cair e, quase por certo, a Rússia entraria numa perigosa e muito delicada guerra civil.

Então Putin faz a sua jogada: sacrificou parte do seu poder.

Mostrou debilidade, chegou a um acordo (não sabemos os seus termos) e fez aquilo que nunca fez: mostrou misericórdia.

Até eu, que tento ser sempre muito analítico nestas coisas, num primeiro momento, fiquei pasmado.

Mas depois pensei….

O Estado Russo é o único cliente do Grupo Wagner que, como Putin admitiu (finalmente), custava à Rússia, perto de mil milhões de dólares por ano.

Ora o Grupo Wagner é uma empresa e os seus operacionais só lutam por dinheiro e nada mais.

Se o Estado Russo deixar de financiar o grupo Wagner, por muito dinheiro que Prigozhin tenha acumulado ao longo dos anos (e que foi imenso), mesmo assim não conseguirá manter toda a estrutura (que se tornou complexa, a atuar em 4 continentes, com milhares de operacionais), mais do que alguns poucos meses.

E, nas empresas, quando se acaba o dinheiro, desaparecem todas as fidelidades e esfumam-se todas as lealdades.

Mais: Putin dá aos operacionais do grupo Wagner que, dentro de pouco tempo, ficarão no desemprego, uma saída viável e, de algum modo, atrativa: o perdão do apoio a Prigozhin e a integração nas Forças Armadas Russas.

Não é grande coisa, mas é muito melhor do que o resto da vida numa prisão russa e isto na melhor das hipóteses. Porque, todos sabem, a maioria, seria "premiada" com um "brinco russo" [tiro atrás da orelha], depois uma "boa estadia" nas caves de Lubianka (a famosa sede do SVR/KGB onde, durante décadas, nas suas caves, foram torturados e assassinados milhares de opositores e dissidentes ao regime soviético).

Os que conseguissem escapar, e que seriam poucos, enfrentariam a total falta de rendimentos e sem perspetiva de os ter num futuro próximo, para além de uma vida de fuga, clandestinidade e medo.

Assim, em poucos meses, Yevgeny Prigozhin será um líder sem liderados, um comandante sem tropas, um poder impotente.

E aí, e só aí, com Yevgeny Prigozhin sozinho, enfraquecido, esquecido, Putin "acertará" as suas contas.

Se Putin reagisse agora, perderia o poder, provocaria uma chacina, desencadearia uma guerra civil e, por eventualidade, se conseguisse eliminar Prigozhin, transformaria um revoltoso num mártir, num mito, num herói (como quase aconteceu com Mikhail Khodorkovsky).

E os homens abatem-se, os mitos não; não se luta por um patrão, mas morre-se por um herói!

Como na célebre jogada de xadrez, o Gambito de Dama, por vezes é preciso sacrificar algumas peças para se ganhar o jogo.

E é isso que Putin está, pelo menos, a tentar fazer: um Gambito de Dama.

Sacrifica algumas peças, aparenta fraqueza, demostra fragilidade, mesmo algum medo e desespero. 

Deixa que comentadores de todo o mundo anunciem o seu fim próximo (eu incluído na semana passada), uma viragem na história, o término de uma época.

E com isto o inimigo ganha confiança, enche-se de arrogância, anuncia a vitória, "baixa" as defesas, enquanto a outra parte ganha tempo, reagrupa, restabelece-se e prepara um ataque sem hipótese de fuga.

É sempre um risco, os resultados nunca são certos porque, em rigor, nunca sabemos como o opositor irá reagir, mas é sempre melhor que um confronto imediato com uma derrota certa.

E era isso que Putin iria obter, se reagisse, no primeiro momento, a Yevgeny Prigozhin.

E para um homem prático, como Putin, um Agente do KGB, cada dia vivido é único e precioso, é uma conquista: 24 horas de oportunidades de sucesso, de vitória... de vingança.

Analisando as reações de um e de outro lado, e mesmo a desagregação de várias unidades do grupo Wagner, especialmente em África, tudo indica que a jogada de Putin está a resultar e que Prigozhin não tem argumentos para lhe fazer frente.

Também como no xadrez, Prigozhin tentou um xeque-mate e falhou o que, quase inevitavelmente, é fatal porque se fica expostos, perde-se a iniciativa, passa-se do ataque à defesa, da ação à reação, de predador a presa.

No entanto a Rússia é sempre a Rússia e o impensável, nas terras do Czares, é somente mais uma "normalidade" onde tudo é possível.

O futuro nos revelará os resultados.

Veremos, então, qual será a nossa posição, a da Europa, neste tabuleiro cada vez mais complexo, mais imprevisível e mais perigoso.