… E SEMPRE QUE UM HOMEM SONHA… mais reflexões sobre a experiência na Turquia

15-03-2023

(…)"Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que o homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança."


In Pedra Filosofal

António Gedeão

O que uma semana num campo de acolhimento humanitário na Turquia, em Iskenderun, na província de Hatay, a zona mais afetada pelo sismo de 6 de fevereiro, nos pode ensinar sobre política e geoestratégia?

Mais: o que nos pode ensinar se tirarmos da análise as eleições do próximo dia 15 de Maio e de estarmos numa zona completamente dominada pela oposição ao governo vigente há 20 anos, pelo todo poderoso presidente Erdoğan, o que daria uma análise mesmo muito profunda? (que faremos depois de 15 de Maio).

Simples!

Um campo de acolhimento humanitário, tal como os de refúgio humanitário (o que, normalmente se chama de "Campo de Refugiados) é, todo ele, um microcosmos político-social onde tudo se passa a todo o momento num curtíssimo espaço de tempo.

Por isso, estar num campo de acolhimento humanitário é ver a política real, em alta velocidade, a acontecer 24 horas por dia, 7 dias por semana, a todo o segundo, literalmente.

Desde as lutas pelo poder, as hierarquias que se estabelecem e as que, de facto, se implementam, quem pode o quê, quem consegue o quê, quais os interesses, quais as motivações, quais as repelências e isto a todos os níveis: regional, nacional e mesmo (principalmente) internacional… tudo isto e muito mais se vê neste campo assim como noutros por todo o mundo.

Poderia, sem exagero, escrever dezenas de textos sobre o que observei, analisei e aprendi desde que aqui cheguei (e alguns escreverei mesmo).

Mas há algo que me marcou profundamente e é sobre isso que vos escrevo hoje:

a diferença entre o querer e o fazer.

Para vos contextualizar: Iskenderun era uma zona balnear, literalmente uma cidade paraíso de condomínios fechados e casas de férias da classe abastada da província de Hatay, no Sudeste da Turquia.

Esta "nova cidade", a do Turismo, está seriamente danificada, embora não arrasada, devido à fraca qualidade da construção e terá que ser, em grande parte, demolida para ser reconstruída.

Depois havia a "cidade velha", essa sim completamente arrasada, onde viviam pessoas muito humildes, pescadores, artesãos.

Essa cidade tinha sido (re)construída pelo Governo de Erdoğan depois do sismo de 1999, para albergar os desalojados.

Foi edificada (sabemos agora) negligenciando, completamente, as mais básicas regras da construção, especialmente se atendermos que estamos numa região altamente sísmica.

Esse sismo, embora de intensidade quase idêntica, teve muito menos efeitos e consequências.

As antigas casas de argamassa dos pescadores provaram ser mais resistentes e menos letais que os modernos apartamentos da reconstrução.

Antes do sismo o turismo era a principal indústria da região, os negócios imobiliários uma fonte de enorme rendimento e também de especulação e o mercado hoteleiro tinha uma grande influência social e política.

E tudo assim andava e até prosperava, claro (e como sempre), mais para uns do que para outros.

Afinal, o sismo de 1999 já foi há muito tempo e a memória humana é muito curta, demasiado curta, especialmente para o que não interessa.

E assim, este município não estava, nem de perto nem de longe, preparado para o que aconteceu.

E onde se nota mais isso?

Não é na vontade das pessoas, inclusive classe política, de resolver as coisas, de fazer, de executar, de avançar.

Não é na falta de meios que chegam de todo o mundo, desde pessoal a material de todo o tipo, alimentação, produtos de higiene, tudo.

Ainda Sábado, por exemplo, chegou, da Suécia, um camião balneário em que os chuveiros são quase melhores dos que da minha casa.

Não!

O que falta é pessoal que saiba o  que fazer e, fundamentalmente, como fazer.

Temos um camião com chuveiros de luxo mas não há um sistema de som no campo capaz de transmitir mensagens aos seus ocupantes (nem avisos de emergência); todas as tendas tem luz elétrica mas a zona de alimentação não é coberta, logo, se chover ou estiver muito sol, não há onde esta gente possa comer abrigada (nem tão pouco esperar pela refeição); há atividades fantásticas para crianças e adultos mas não há um plano de emergência nem meios de combate a fogo (as tendas são de nylon e, por causa do frio, fazem-se, à noite, fogueiras em bidons, por todo o campo).

Tenho lidado de perto, até quase intimamente, com o Presidente da Câmara, com o Deputado eleito pelo Distrito (que me anda a introduzir, orgulhosamente, na cozinha tradicional desta região) e mesmo com o Governador da Província.

Trabalhei, lado a lado, com o Diretor do Campo e com a Coordenadora dos Serviços de Saúde.

E todos eles tem uma coisa em comum: todos querem, mesmo, fazer algo por esta gente e por esta região.

Mas partilham outra coisa, essa, infelizmente, nada benéfica: não o sabem fazer, o que fazer, como fazer.

Não tem formação, nem pessoal que a tenha, em gestão de emergências, desastres e crises humanitárias; não tem ninguém que alguma vez se tenha formado em logística humanitária, busca e salvamento, apoio social, medicina de catástrofe… nada...

…afinal… esta era uma zona balnear dos ricos e abastados…

As Nações Unidas tentam ajudar, mas estão demasiado controladas pelo governo turco (que não quer olhares indiscretos tão perto das eleições) e, também, como já referi várias vezes, demasiado paralisadas pela sua própria pesadíssima estrutura e burocracia (há dias em que clusters, sub-clusters e sub-sub-clusters, chegam a ter 36 reuniões agendadas e isto das 10.00 às 16h00).

As Nações Unidas, infelizmente, tornaram-se a hipérbole da burocracia kafkiana, liderada por teóricos da Ação Humanitária ou por "alpinistas políticos," que passam os dias em reuniões de que se emanam excelentes intensões, mas quase nenhuma ou mesmo nenhuma ação concreta e minimamente adaptada ao terreno ou à realidade (que eles não conhecem porque nunca saíram dos gabinetes) resultando, somente, num aparatoso e caríssimo teatro de tendas, bandeiras azuis e em mais coisa nenhuma.

…e o Governo, em Ancara, sendo esta uma região com forte oposição ao regime, não tem grande motivação para resolver, de facto, os problemas, ou seja, o que for.

Se não fossem as ONGs e o trabalho hercúleo, mesmo heroico, que aqui estão a fazer, com quase nenhuns meios, e muita desta gente não tinha ninguém que lhe valesse!

Embora algumas ONGs sejam só NG, porque, de organização nada tem, dirigidas por pseudo políticos de algibeira, homenzinhos ridículos nas suas teorias de liderança proativa (que nem é pró, nem ativa e, muito menos, liderança)  que prometem o que não tem, informam o que não sabem, e garantem o que não podem dar e que se não fosse tanta a estupidez até se podia pensar ser malicia, muitas delas fazem um trabalho notável, meritório, fantástico.

Um exemplo é a ONG que acompanhei, a Together Portugal que fez, com quase nada, ações fantásticas, que beneficiaram, diretamente, esta gente, em especial o público feminino, muito desprotegido nesta cultura.

Parabéns ao Dr. Ricardo Bordón e à Dr.ª Alexandra Menezes por este trabalho e a toda uma a vasta equipa (muita dela constituída por alunos da ISO-SEC!!!!! Desculpem a vaidade, mas fundamentalmente o orgulho) que, desde Portugal, sempre nos acompanhou e garantiu que tudo funcionasse na perfeição.

Resumindo: este município está entregue a si próprio e, como já disse, até tem os meios, mas não tem quem os saiba aplicar e deles tirar o real proveito e benefício para as populações.

Poucas pessoas entendem que gerir, que governar, que fazer, não é só ter vontade, motivação e boas intenções.

Isso é imprescindível, claro: é a força motriz, é o que dá sentido e lógica a tudo e, neste caso do sismo e da Ação Humanitária é também uma obrigação endémica à nossa condição enquanto indivíduos civilizados.

Mas também é fundamental saber o que fazer, como fazer, quando fazer, com quem fazer, e tudo isto com correção, eficiência, beneficiando de todo o conhecimento desenvolvido até ao momento nos mais diversos contextos e pelos mais capazes especialistas…

Quando jantava, no dia da minha chegada, com o Presidente da Câmara, ele mostrou-me, orgulhoso, o esquema do campo de acolhimento humanitário para onde eu estava destacado, esquema esse que, que ele próprio e a sua equipa tinham demorado 1 dia e meio a fazer (e isto 1 mês depois do sismo).

Vi, olhei, e abri o Manual de Campo de Gestão de Desastres do Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas (3ª edição que era a que tinha no laptop por ser mais "leve") e dei-lhe os parabéns porque, os 2 esquemas, até estavam muito parecidos.

Isto é: o Presidente da Câmara e o resto da equipa tinham passado 1 dia e meio do seu tempo a "inventar a roda", a perder tempo precioso, especialmente em contexto de Crise Humanitária, onde todo o tempo é precioso.

Na política, na política real, especialmente em situações extremas como esta, tem, de uma vez por todas, de se entender uma coisa: ela existe para governar pessoas reais, em situações reais, com problemas reais.

Claro que há a ideologia, as tendências partidárias, as "visões", as "politicas" e as estratégias.

Tudo isto existe e tudo isso é fundamental, mas só o é se for, efetivamente, aplicado no terreno, executado, realizado, feito, se se conseguir passar da ideia ao facto, do sonho à concretização, do pensamento à ação.

E, para isso, é necessário que haja quem o saiba fazer, quem saiba estabelecer prioridades, quem saiba alocar meios, humanos e materiais e fazer com que tudo possa convergir num e só num objetivo, propósito e resultado: o bem-estar da população.

Especialmente quando as consequências podem ser tão gravosas.

Porque, também temos que entender, ajudar mal, pode ser (e normalmente é) pior do que não ajudar.

Por exemplo: ninguém pensou no domingo que, embora a Turquia seja um país Islâmico, está muito ocidentalizado, logo, era o dia de descanso semanal. 

Lógico que os cozinheiros não apareceram e, 1 mês depois do evento, ainda não houve ninguém que fizesse uma simples escala de serviço do pessoal para resolver a questão.

Que se faz?

Distribui-se uma refeição enlatada, fria, com muito sal.

A quantidade de lixo que esta solução produziu (já para não falar da questão ambiental), o aumento da quantidade de consumo de água que provocou (que é o recurso mais valioso e difícil de gerir em qualquer campo) para além do descontentamento visível da população (e todas as consequências que daí podem advir) são resultados graves provocadas por uma só falha: não haver uma simples e humilde escala de serviço dos cozinheiros.

Mas, claro, às 15h00 houve atividade psicossocial para as crianças com distribuição de peluches…

Também na política o "menos é mais", também na politica tudo deve começar pelo básico, pelo fundamental, pelo simples, pelo elementar.

Mas para que isso aconteça é necessário que se saiba fazer acontecer.

Ao contrário da poesia em que, para o mundo pular e avançar, basta sonhar, na política é mesmo necessário pular a avançar, isto é, quem saiba fazer e como fazer e que, de facto, o faça.

Afinal… alguém teve que saber fazer a bola que estava nas mãos da criança do genial poema "Pedra Filosofal" do António Gedeão, ele próprio, como Professor Rómulo de Carvalho, um físico, um investigador, um homem que não só sonhava, mas que muito estudou para realizar esses sonhos.

O sonho é sempre o ponto de partida, o primeiro passo, o que desencadeia o processo.

Mas não se vale por si só!

Precisa de se realizar, de se tornar facto.

Porque só assim tem sentido.

Realizar os nossos sonhos: eis o objetivo!

Se assim não for é só estupido, ridículo e inútil!

Assim (e concluindo): continuem a ter ideologias, motivações e causas, mas estudem, aprendam, formem-se, precisamente para que esses projetos se tornem concretos, para que essas motivações se tornem efetivas, para que esses sonhos se tornem realidades.

Porque, "se nem só de pão vive o Homem", como dizia um conhecido judeu há 2.000 anos, temos de ter bem presente que, sem ele, por muita boa vontade e sonho que haja, não se vive de todo.