CLEARANCE E VETTING ou quando o governo quer inventar a roda e criar a rolha!!!

17-01-2023

Quem anda nestas coisas de Política, Intelligence e Geoestratégia, normalmente, guia-se por algumas boas máximas (algumas delas "velhas") criadas pelos grandes mestres e que nos orientam no nosso dia a dia, que nos ajudam a decidir, que nos ajudam a ter uma visão racional num ambiente nem sempre muito lógico.

Uma delas é que "nem todas as verdades são para todos os ouvidos" de autoria do grande Winston Churchill e outra máxima é "a pior raposa é aquela que tu próprio convidaste para o teu galinheiro" do não menos grande (embora de diferente modo) John Le Carré, pseudónimo do grande agente de Intelligence David Cornwell.

É precisamente para garantir que as verdades sejam sempre ouvidas pelos ouvidos "certos" e que não metamos "raposas" no nosso próprio galinheiro que há relativamente pouco tempo (pouco mais de 100 anos) países atrasados e subdesenvolvidos como o Reino Unido, o Canadá, os Estados Unidos da América, a Austrália, a França criaram e implementaram dois processos: o Clearance e o Veeting.

Estes dois processos partem de um mesmo e único pressuposto: há funções, cargos e postos nas instituições, empresas e organizações, sejam estas públicas ou privadas e, principalmente, da Administração Pública e Governo que são tão críticas, tem acesso a informações tão delicadas e podem ter impacto em tanta gente, que não podem ser assumidas por qualquer um.

O processo de Clearance, em específico, verifica se alguém, por um lado, tem as competências, a experiência, conhecimentos e formação necessária para desempenhar determinada função e se, por outro, em termos de legalidade, legitimidade e idoneidade (e mesmo moral) é alguém acima de qualquer suspeita em relação à sua lealdade e coerência de atitude para com os princípios do Estado de Direito, da Nação, das suas instituições e da sua soberania.

Este processo, por exemplo, em termos de Estado, em muitos países, está perfeitamente explícito e claro, tem "força" de lei, e aplica-se, sem exceção ou contemplações a todos os que se candidatam a alguns cargos, postos ou posições.

Os métodos de Clearance foram sendo estudados, desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo dos anos, beneficiando do avanço de ciências como a psicologia, as neurociências e mesmo a informática e a cibernética.

Para a sua aplicação foi, por exemplo, criado o famoso "polígrafo" (de modo a detetar se o candidato está a mentir durante a entrevista) e os métodos de análise comportamental por micro-expressões faciais e linguagem corporal.

Parte-se do principio que o candidato concorda, literalmente, em ser analisado, em todos os pontos da sua vida pública e privada, desde os seus relacionamentos afetivos até às suas "simpatias" políticas, passando pela origem dos seus rendimentos e destino dos seus gastos.

Profissionais devidamente treinados e de instituições independentes (no caso do Estado, normalmente os serviços de Informação), findo o estudo (que no Reino Unido dura entre 3 a 4 meses) emitem o seus veredicto: aceite ou não aceite.

Se for aceite a pessoas recebe o seu acesso (clearance) ao cargo.

Se não... nunca mais se fala assunto.

No Reino Unido este processo chama-se Security Clearance Process e está explícito no Security Clearance Act de 2002 atualizado e revisto em 2015 (Lei do acesso de segurança) em que consta que cargos, postos e posições são obrigados a ser submetidos ao processo, como decorre esse processo, quem é responsável por ele, etc..

Está incluído no famoso Official Secrets Act (OSA), um "pacote" de Leis e Documentos legislativos que tem por função manter a segurança e integridade do Reino, desde espionagem até terrorismo e crime organizado.

Como é evidente há diferentes níveis de acesso (no Reino Unidos são 7) conforme a relevância, responsabilidade, exposição e sensibilidade do cargo a ser ocupado pelo "candidato". É óbvio que o funcionário que processa a correspondência do ministério não precisa de ser investigado ao "nível" e com a "profundidade" de um candidato a diretor dos serviços de informação.

Mas todos, sem exceção, são investigados e há parâmetros que são verificados em relação a todos: o chamado Baseline Personnel Security Standard (BPSS). Origem e destino de bens e ativos, relacionamentos familiares, filiações passadas e presentes, historial criminal e penal, do próprio e de "círculo próximo" são verificados para todos. Também se verifica se os certificados de competências e estudos são mesmo verdadeiros, se tudo o que é posto no curriculum é real e comprovado assim como todas as informações fornecidas são o que afirmam ser.

No caso do Reino Unido a execução deste processo está atribuído ao MI5 (departamento de segurança interna dos serviços de informações de Sua Majestade), para o qual tem um departamento próprio (muito temido por ser extremamente eficiente).

Este processo (já devem ter desconfiado), começou a ser desenvolvido em 1916 quando o Capitão Sir George Mansfield Smith-Cumming criou os primeiros "serviços secretos" do mundo, o Secret Service Bureau, afeto ao Alto Almirantado Britânico , e quis garantir (ou pelo menos tentar) que não havia nem alemães nem soviéticos metidos na sua organização (algo que ele, em permanência, tentava fazer aos outros).

Este processo embora tenha tido falhanços históricos e catastróficos (como o famosos caso dos Cambridge Five) impediu que, durante a Guerra Fria, milhares de agentes soviéticos "furassem" a segurança britânica e, também, e não menos importante, que fossem, de facto os melhores e mais capazes indivíduos a ocupar os cargos mais sensíveis e importantes na altura certa.

O processo de Clearance Britânico, na minha opinião é o grande responsável para Josef Stalin tenha dito, no final da Segunda Guerra Mundial "esta guerra foi vencida pelas máquinas americanas, pelo sangue soviético e pelos cérebros britânicos."

Afinal o processo garantiu que, no comando, estivessem não só os melhores, mas como os mais leais.

Como afirmava Meir Dagan "As ações mais sujas devem ser feitas pelos homens mais honestos!"

O outro processo, National Security Vetting (NSV) é em tudo semelhante, no entanto, não verifica as competências dos indivíduos, mas somente a sua idoneidade para ocupar o cargo, isto é, se não há nada no seu passado que em termos legais, legítimos, éticos ou mesmo morais, ponha em causa a seriedade, integridade, idoneidade e imagem do cargo, da instituição, do Reino e do Monarca.

Também o NSV está devidamente legislado, padronizado, regulamentado, tanto em termos de métodos como de procedimentos e, conforme os casos e os cargos, pode ser da responsabilidade do MI5 ou então da Polícia Metropolitana de Londres (mais conhecida pela sua morada na New Scotland Yard).

Em 2015 (com a revisão de metodologias, processos e, consequentemente, legislativa) ambos os processos passaram a ser prévios, isto é: se alguém se quer candidatar a determinado cargo, posto ou posição, e se este consta na listagem previamente definida de postos, cargos ou posições sujeita a processos de Clearance ou Veeting, antes sequer de se candidatar, tem de requerer ser submetido ao processo de livre e espontânea vontade.

Se for aprovado, aí sim e só aí, pode apresentar a sua candidatura.

Este processa poupa tempo a quem verifica, evita "julgamentos públicos", manchetes incendiárias, a exposição pública de vidas privadas (algumas sem nada ter a ver com a situação), mas, fundamentalmente, preserva as instituições, a sua idoneidade e a sua imagem, de crises, demissões e vergonhas perante o público, os cidadãos que, é importante, confiem nas instituições e em quem as compõe e constitui.

Nestes processos, como é obvio, muito se sabe, muito se descobre, mas, à boa moda britânica as virtudes são públicas, os vícios, esses, sempre privados.

E assim deve ser e assim devem permanecer.

Se for do foro privado no foro privado fica; se houver matéria criminal remete-se para os tribunais; se for do domínio político exclui-se a ou o candidato, e tudo isto sem alarve público, sem manchetes de jornais, sem exposições, sem alarido.

Com descrição, com sobriedade, com elegância como tudo deve ser, especialmente nas instituições do Estado!

Como é óbvio outros países acharam a ideia tão boa e tão bem feita (e já pronta e testada) que literalmente a copiaram como foi o caso dos Estados Unidos da América.

Em alguns casos ainda foram mais longe.

Por exemplo nos Estados Unidos, o processo de Clearance para cargos políticos (ministros, secretários de estado, diretores gerais) tem de passar ainda por audiências públicas em comissões do Senado e/ou do Congresso.

Estas audiências podem envolver vários candidatos e só assume o cargo quem, com sucesso, ultrapassar todas estas fases, como é o caso dos Diretores da CIA, do FBI ou da NSA.

Curiosamente no caso das comissões foi o Reino Unido que "copiou" os Estados Unidos da América. Atualmente, por exemplo, o Diretor dos Serviços Secretos (o famoso C) assim como os seus mais diretos adjuntos, um para a segurança externa, logo diretor do MI6 (o M), outro para a segurança interna, logo diretor do MI5 (o First Desk) são submetidos a audiências por parte da Comissão para os Segredos de Estado da Câmara dos Comuns.

Atualmente, ainda, este processo é continuo, isto é, todos estão, em permanência, a serem analisados por sistemas de rastreamento de procedimentos e atos interditos, atos esses que, se efetuados ou envolvendo algum indiciado sob obrigação de Clarence, faz "disparar" alarmes que são prontamente analisados e verificados.

São inúmeras as exonerações e as demissões tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos por causa da aplicação deste sistema de monitorização contínua.

Muitos países conheceram este processo, gostaram, copiaram e implementaram.

Muitas organizações e instituições privadas, especialmente aquelas para quem a transparência e idoneidade são fatores capitais no seu posicionamento perante o mercado, adotaram ou incorporaram os mesmos processos, surgindo empresas privadas especializadas na sua implementação e execução.

Muitos bancos, seguradoras, corretoras, financeiras, empresas e organizações que sabem que, em algumas áreas e em alguns sectores, o parecer tem tanta importância como o ser e que a mera dúvida ou suspeita basta para por em causa toda a instituição, todo o sistema, todo o normal funcionando das instituições, incorporam tanto processos de Clearance como de Vetting nos seus sistemas de Compliance.

E, mesmo assim, tanto no sector público como no sector privado, tanto em governos como em empresas o sistema falha, tem lacunas, comete erros.

Mesmo com todo este tempo, estes conhecimentos, esta investigação, estes meios, este investimento, o sistema falha....

Pois....

Existe isto tudo!!!

Mas, eis senão quando, o Governo português, genial e previdente, decide criar um novo sistema!!!!

Esse sim!!!

Afinal de que vale um sistema criado, testado e implementado em dezenas de países, muito deles aliados, baseado em evidencias cientificas, testado na dura realidade de democracias dinâmicas e dotado de credibilidade e imparcialidade?

É MUITO melhor um questionário com 37 questões, elaboradas em menos de uma semana por assessores políticos, ao qual o próprio candidato responde e a que se vincula com uma "declaração de honra"!!!

Brutal, genial, quase sobre humano!!!

Já estou a ver nos corredores de Westminster e Whitehall, nos gabinetes do Capitol Hill e do Pentágono manuais a serem rasgados, especialistas e cientistas a serem dispensados, procedimentos de anos a serem abandonados para se adotar, à escala mundial, o novo, surpreendente, genial é infalível sistema português das 37 questões (The 37 questions Tuga Method como ficará mundialmente conhecido e gravado nos anais da história!!!!)

O método é tão claro que ninguém sabe, exatamente, quem as elaborou, quem as vai fazer, como vão ser processadas, analisadas e quais os seus mais básicos parâmetros assim como a que cargos e postos se aplica.

Só se sabe uma coisa, afirmada pela Senhora Ministra Maria Vieira da Silva (pela qual tenho particular estima): se o candidato não aprovar no processo isso não implica o veto à sua nomeação, isto é: até pode ser mau, mas se ninguém souber ou não for muito escandaloso, "marcha" na mesma.

Este processo é só tão estúpido, ridículo e absurdo que, das duas uma: ou os políticos portugueses nem sabem que existe, há décadas, em países seus aliados, processos de Clearance e Veeting ou não querem, de facto, que um sistema eficaz, sério e transparente funcione em Portugal.

Em ambos os casos, seja um, outro ou até os dois, é algo de grave, muito grave que transmite uma imagem de um governo desgovernado, desorientado, perdido....

Para não variar muito, porque se fosse algo mesmo bem feito, até estranhávamos!!!!


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