A CIDADE E AS SERRAS - A "REVOLUÇÃO" DIGITAL DO GOVERNO

06-09-2024

Juro que nestas férias me senti um verdadeiro Jacinto, do genial e imortal livro "A Cidade e as Serras" do nosso grande Eça.

Algures no interior do país, numa agradável praia fluvial, desfrutei, com os meus filhos, de uma paz e sossego absolutos.

Sem televisão, com uma rede móvel reduzida (mesmo muito) e dados móveis inexistentes, descobrimos os pequenos mas fundamentais prazeres da vida: conversar, ler, brincar, jogar jogos de tabuleiro (as minhas derrotas no xadrez com o meu filho foram pesadas…).

Às 7:00 da manhã (hora a que, não sei porquê, tinha alguns dados móveis), passava uns 30 minutos a atualizar o e-mail e o LinkedIn…

Depois, o resto do dia era a "escuridão" digital.

Tudo isto, tal como no livro do Eça, é muito bonito e idílico para quem sabe que, dentro de dias, voltará à "civilização", ao 5G, ao acesso ao mundo digital.

E quem lá fica, quem vive aqui, quem tem aqui a sua vida?

Que tipo de igualdade existe num país que se diz a caminhar para a era digital, quando muitos dos serviços do Estado são, pura e simplesmente, de acesso on-line, e quando muita da informação é fornecida também por via da internet?

Que modernização e digitalização é esta que deixa de fora, literalmente exclui, uma parte significativa da população, e logo a população do interior, que assim fica cada vez mais isolada, abandonada, excluída?

Como é que não querem que se abandone o interior do país se simplesmente não criam condições para que as pessoas, com dignidade e igualdade, aqui se instalem, trabalhem e "façam" a sua vida?

Travar a desertificação do interior, controlar os preços no mercado imobiliário do litoral, desenvolver o sector primário sustentável nas terras agrícolas de, por exemplo, Trás-os-Montes e Beiras, promover a igualdade entre o litoral e o interior, passa, antes de mais e primeiro que tudo, por medidas estruturantes e estratégias efetivas que permitam algo tão básico quanto isto: que alguém tenha as mesmas condições de vida no interior e no litoral.

É um direito de qualquer cidadão poder viver com as mesmas condições e dignidade em Lisboa ou na Covilhã, no Porto ou na Guarda, em Coimbra ou em Bragança.

Enquanto isso não acontecer, enquanto, depois de 50 anos de democracia, Portugal continuar a ser Lisboa e tudo o resto paisagem, os problemas estruturais de Portugal continuarão, tal como os da habitação, o desemprego nos centros urbanos, a dependência de produtos agrícolas externos e, logo, o aumento das importações, etc., etc., etc.

Ao contrário do que os nossos iluminados políticos pensam, as boas e efetivas políticas, aquelas que geram desenvolvimento, progresso, retorno, sucesso, não se baseiam em grandes projetos industriais ou grandes investimentos em data centers.

Começam com o básico: com uma boa gestão do território, com um inteligente nivelamento das condições de vida, em suma, com a criação de condições para que todos, mas todos, possam contribuir para o desenvolvimento do país, e não só alguns.

Não há Estado desenvolvido quando se permitem cidadãos de primeira e de segunda, quando famílias são obrigadas a deixar a sua terra para se irem deixar escravizar nas grandes cidades, quando milhões de hectares ficam condenados ao abandono, improdutivos, desérticos, quando poderiam estar a produzir cá dentro o que compramos, a preços altíssimos, lá fora.

Política não são debates floreados e vazios entre partidos para serem transmitidos na televisão, em questiúnculas para criar audiências.

O país não evoluí só porque se deixa de escrever "mulher" e se passa a escrever "pessoa que menstrua", ou porque se quer referendar, imagine-se, a emigração.

Política é "gerir a coisa pública".

Façam-no.

Portugal precisa de mais política e de menos partidarismo.

Essa é a grande questão.

Esse é o grande problema.