A VITÓRIA DE KAMALA HARRIS
Muitas vezes disse, aqui neste espaço, que sempre pensei que o mandato de Joe Biden era o "lançamento" dos dois mandatos de Kamala Harris.
Sempre pensei que a candidatura do "velho lobo" de Capitol Hill, em 2019, tinha como único objetivo derrotar Donald Trump para depois lançar alguém que, de facto, restituísse o prestígio, a influência e a relevância que os Estados Unidos devem ter no contexto geopolítico global, agora não como um dos polos da bipolarização geoestratégica, mas como uma espécie de regulador, de fiel da balança, num mundo que se quer mais justo, mais igualitário, mais equilibrado.
Também já várias vezes expressei, neste espaço, a minha estupefação quando vi Biden a querer, realmente, exercer a presidência, assumir o protagonismo, relegando Kamala para segundo plano, e, mais estupefato fiquei, quando o vi avançar com a recandidatura, completamente incapaz, inapto, diminuído.
Mas esta atitude, até para o sistema americano, em que, em rigor, tudo é possível, era demasiado inverosímil, imprudente e insana.
Seria dar, em "bandeja de prata", a Donald Trump a presidência, algo que qualquer ser pensante e com sanidade mental não quer de todo.
E, sendo assim, por pressões internas e externas, Joe Biden, de um modo que não merecia, de um modo que não foi digno nem o prestigiou, afastou-se sem brilho nem glória depois de servir exemplarmente o seu país e mesmo o mundo por mais de 50 anos.
Neste espaço afirmei e repito: Biden merecia uma saída gloriosa da vida pública, do serviço público, e só não a teve porque ele próprio não o permitiu.
Mas esta saída tardia deixa o Partido Democrata muito mal posicionado, com um candidato que desiste, outro de última hora, quase de recurso, sem opção de avaliar outras hipóteses, outras alternativas, não mais capazes de governar, porque isso Kamala, por toda a sua carreira (e não só como vice-presidente), já mostrou que sabe fazer, mas um candidato mais capaz de derrotar Trump.
Mas eis que Kamala Harris, desde o primeiro momento em que se assume como candidata, mostra algo que não lhe conhecíamos, algo que tinha "escondido", "reservado", "oculto":
Uma fantástica astúcia política!
Demonstrou isso, sem que soubéssemos, muito antes de ser candidata, apoiando explicitamente Joe Biden, nunca deixando de estar ao seu lado, promovendo-o, elogiando-o, mas nunca, mesmo nunca (e isso vemos agora), dizendo que não seria candidata se Joe saísse da corrida.
Kamala esteve sempre "no jogo", nunca "indo a jogo".
Assim, quando Biden se viu quase que obrigado a afastar-se, Kamala estava "no jogo", pronta a avançar no segundo seguinte, de modo a não perder mais tempo.
E quando avançou, perante a desistência do seu "mentor", não foi pelo caminho mais fácil e óbvio de se mostrar melhor, mais capaz, mais eficiente que o seu antecessor, muito pelo contrário.
Kamala teve a "arte e o engenho" de utilizar Biden para se lançar, para se mostrar não como a rutura, mas como a evolução; não melhor, não mais capaz; não mais eficiente, mas a pessoa certa para terminar o que já tinha sido começado, com forças para continuar a caminhar, transformando uma "corrida" numa "estafeta", dando ao seu antecessor os créditos da partida, mas reclamando a capacidade de vencer na chegada.
Kamala chama a si, assim, todo o "património" de Joe Biden, mas lançando esse património para uma nova geração, para uma nova América, para um novo mundo.
Kamala transforma Biden de um candidato diminuído num modelo, num criador de um modo de ser e estar em política, um ícone, um exemplo a seguir.
Kamala cria o "Bidenismo" e torna-se a sua primeira seguidora, ativista e promotora.
Depois... era tão fácil, mas tão fácil e tentador começar a campanha a atacar Trump e tudo o que ele fez, representa e significa...
Mas não: Kamala começa a campanha a dizer quem ela é, o que fez, o que conquistou, o que realizou, o seu contributo para a justiça, as suas vitórias como procuradora, defensora e representante do povo na barra impiedosa dos tribunais americanos.
Não a mulher, não a negra, não a descendente deste ou daquele povo, cultura ou etnia (embora isso também). Mas antes a pessoa (não importa se branca ou negra, se homem ou mulher) que luta contra o mal, luta contra o crime, defende os indefesos, dá voz aos oprimidos e esquecidos da América "trumpista" e que, sabem que mais?
VENCE!
Kamala não só tenta, ela consegue, não só luta, ela vence e a história prova-o e demonstra!
E ao afirmar quem é, torna claro e cristalino quem Trump não é nem nunca será (mas também o que é e sempre será).
Kamala, com esta atitude, tira o debate político do terreno onde Trump se sente confortável, das causas fáceis, populistas, radicais, extremas e deturpadas, em que tudo é válido, tudo é permitido desde que se tenha os amigos certos.
Kamala levou o debate político para a justiça básica, da procuradora que dedicou a vida à busca da justiça, que se opõe ao rufia já várias vezes condenado, ao caloteiro com milhões em dívidas, ao abusador de mulheres, ao subornador de prostitutas e tirano dos seus funcionários, que trata como escravos e que os despede, em direto, num reality show, a babar-se da satisfação mórbida dos prepotentes.
Trump não só não sabe como não pode vencer o debate neste campo.
Por isso, o mais natural (e já o está a fazer) é avançar para o ataque pessoal, para a calúnia, para a mentira descarada (como prova o cartaz manipulado da cantora Taylor Swift), para a mesquinhez baixa.
E se Kamala Harris conseguir manter a firmeza e o "nível" (o que acredito que conseguirá), mesmo que Trump vença nas urnas, sairá destas eleições tão rebaixado, diminuído, exposto e "sujo" que, tanto interna como externamente, nunca será visto e respeitado como o governante da maior potência mundial e líder da maior e mais antiga república democrática do mundo, mas sim como um rufia, um criminoso de delito comum, um ignorante básico eleito por outros como ele.
Se Trump vencer, será, literalmente, como vaticinava, em 1945, o profético George Orwell, o "Triunfo dos Porcos".
Estas eleições deixaram de ser entre republicanos e democratas, entre candidatos com visões diferentes: passaram a ser o debate sobre o que os Estados Unidos querem ser: a terra dos livres ou a terra dos rufias.
Porque o que Kamala Harris conseguiu foi transformar uma eleição numa definição.
Já não se pede aos americanos que elejam mais um presidente, mas que definam um país e o seu futuro.
Querem uma América como a terra dos "livres e dos bravos" ou a terra de "rufias e ignorantes"?
Trump fala de imigrantes, de cidadãos de segunda, de povos "proscritos", eleva os americanos como o "povo eleito" e ameaça com aniquilação e destruição todos aqueles que se opõem a essa sua verdade que ele próprio acha óbvia e incontestável.
Kamala, ainda no outro dia, afirmou: "...todos os Homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são a vida, a liberdade e a busca da felicidade."
Esta frase não é de sua autoria, nem de nenhum político democrata.
Estas palavras compõem a primeira frase da Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, assinada pelos 56 delegados fundadores da Nação, em Filadélfia, no dia 4 de julho de 1776.
Se Trump nunca leu estas palavras, é muito grave; se as ignora, é ainda mais grave.
Uma América que eleja Trump é uma América que se aniquila, que se nega, que destrói as suas bases, as suas origens, os seus princípios fundadores.
Esperemos por novembro para descobrir como os americanos se definem e definem o seu país: como a terra dos livres ou a terra dos rufias.
Como costumo dizer: quem viver, verá.