A VITÓRIA DA UCRÂNIA?

21-09-2024

Depois de quase três anos de conflito, as forças ucranianas conseguiram algumas vitórias importantes e significativas durante o mês de Julho/Agosto de 2024.

Num ataque surpresa e relâmpago, as Forças Armadas Ucranianas conquistaram mais de 1.100 quilómetros quadrados de território russo, recuperando, inclusive, o controlo da estratégica cidade de Kursk.

A moral entre as tropas ucranianas é elevada, e há imagens impressionantes de unidades completas do exército russo a renderem-se às corajosas tropas ucranianas.

Tudo isto é extremamente animador e dá-nos, a todos, uma réstia de esperança de que este conflito penda, como todos desejamos, para a facção invadida, chacinada, injustiçada, e não para a tirania, o despotismo e a agressão personificados em Vladimir Putin e no seu governo.

Mas, meus amigos, isto é realpolitik e, como já vos disse várias vezes, aqui quase nunca o que parece é.

Qual é a razão, ou as razões, para que a Rússia, mais de dois anos e meio após o início do conflito, ceda desta maneira, permitindo incursões tão avassaladoras e sofrendo derrotas tão humilhantes?

Temos de concordar que, se algo tão dramático aconteceu, é porque algo importante se passou, seja do lado russo, do lado ucraniano, ou, em simultâneo, de ambos.

Há vários fatores óbvios que devemos considerar.

Do lado russo, o cansaço, o desgaste, a falta de meios materiais e humanos, obviamente, começam a sentir-se.

São já milhares de baixas e, como ensina a clássica teoria militar, uma baixa é sempre substituída por um elemento menos capaz.

Desta forma, após dois anos de conflito, tanto o material como os militares russos são não apenas menores em número, mas também de inferior "qualidade" e "eficiência".

É óbvio que assim seja!

Também é óbvio que, com o prolongamento do conflito, as seculares e típicas "maquinações", "jogos" e "ardis" nas cúpulas do Kremlin se intensifiquem e se tornem mais impiedosas e agressivas.

As manipulações devem ser muitas, as traições também, e o próprio Vladimir Putin, sempre tão racional e focado, já por várias vezes mostrou impaciência e irritação com as suas chefias militares e mesmo políticas, cada vez mais incapazes, viciadas e corruptas.

Não nos esqueçamos de que, há um ano, Putin entrou em confronto com um dos seus principais aliados e suportes, Yevgeny Prigozhin, líder do Grupo Wagner, grupo esse que era um dos fortes garantes da ordem e disciplina, logo da eficiência e sustentabilidade, das tropas russas na frente de batalha ucraniana.

A Spetsnaz, tropas de elite controladas pelo Serviço de Segurança Federal (FSB), utilizadas desde o início do conflito, tem sofrido pesadas baixas e um soldado de elite não se forma de um dia para o outro nem se "encontra na esquina" alguém com perfil e capacidade para o ser.

Desta forma, as forças armadas russas que atualmente combatem são as "regulares". E todos sabemos as suas características (e não é de agora): indisciplinadas, desorganizadas, corruptas, com seríssimos problemas de alcoolismo e um crónico défice de qualidade, preparação e capacidade das lideranças intermédias, antiquadas nos métodos e paralisadas pelo medo de inovar, arriscar e reclamar a iniciativa, pois todas estas ações, fundamentais para uma vitória militar, implicam o risco de falhar e, na Rodina, o falhanço paga-se pelo mais alto preço.

Por outro lado, as Forças Armadas Ucranianas começam agora a receber do Ocidente, de facto, material bélico de altíssima qualidade e, mais importante, os militares treinados pelas forças armadas da OTAN/NATO, muito especialmente as britânicas, começam a chegar ao terreno e a conseguir pôr em prática tudo o que aprenderam.

Desta forma, é natural, e até quase óbvio, que, cada vez mais, a Ucrânia vença batalhas e a Rússia as perca.

Mas, em termos militares, temos, por muito que nos custe, de colocar algumas questões:

o "custo" destas vitórias, a sua real "eficácia" e efeito.

Porque, como sabem todos aqueles que têm um mínimo de conhecimento de estratégia militar, o grande custo de uma conquista não é realizá-la, mas mantê-la.

Conquistar uma cidade pode conseguir-se em dias, até em horas; agora, manter essa cidade, conservar o seu domínio, especialmente se a frente inimiga estiver próxima e houver tentativas de recuperação, é algo que implica um custo, um desgaste e meios de escala de enormidade imensa.

E a Ucrânia não tem esses meios nem tem a possibilidade de "empurrar" a Rússia para longe da frente de combate, simplesmente porque a Rússia é imensa e estará, sempre, em cima da linha de combate (em nomenclatura militar define-se como "capacidade de absorção").

Desta forma, por muito que nos custe admitir (a mim custa!), estas conquistas têm um efeito e um resultado puramente anímico e moral, pois a Ucrânia não vai conseguir manter os territórios conquistados.

A única hipótese da Ucrânia beneficiar desta "vaga de sucesso" é, numa relativa posição de força (que nunca teve durante dois anos), abrir negociações diplomáticas, conseguindo, desta forma, algumas concessões e cedências por parte do Kremlin que, numa posição de fragilidade, nunca conseguiria.

Este é, precisamente, o momento de Kiev encontrar um intermediário razoável (a Turquia, por exemplo) e começar negociações sérias para a conclusão do conflito.

Mas, para isso, é necessário que Volodymyr Zelensky também esteja disposto a ceder, a abdicar, a recuar.

Porque é assim que se negoceia: cede-se para ganhar, abdica-se de alguma coisa para se obter outra de maior valor.

Negociação sem cedência não é negociação é capitulação e a Rússia não vai capitular.

E, ainda há muito pouco tempo, Zelensky, como que inebriado e iludido pelas vitórias ucranianas, voltou a reafirmar que o conflito só terminará com a retirada total e incondicional da Rússia dos territórios ocupados desde 2014.

Ora, todos sabemos que isso não irá acontecer.

E não irá acontecer com Putin ou sem Putin, com a Rússia dominada por forças extremas ou democráticas, simplesmente porque a Rússia NUNCA abrirá mão da Crimeia e do acesso livre ao Mar de Azov, porque disso depende quase a sua sobrevivência econômica, financeira e mercantil (tanto em termos de exportações como em termos de importações).

Se Zelensky perder esta oportunidade de negociar, pode não voltar a ter outra tão vantajosa.

Porque sou-vos muito sincero: por muito que queira acreditar em tudo o que disse até agora, não acredito.

Conheço os russos há décadas, sei como pensam, sei o que valem, tanto no presente como no passado.

Também há anos que estudo e analiso o perfil de Vladimir Putin.

E tudo isto, como se costuma dizer, parece demasiado bom para ser verdade: as conquistas foram demasiado fáceis, houve casos em que as forças russas se retiraram, a evacuação de civis (cerca de 120.000 até ao momento) é feita com tempo e planeamento e, excetuando Kursk, nada do que foi conquistado é, de facto, muito relevante.

Mas, para que estas conquistas aconteçam, as forças ucranianas, em pleno pico do verão, estão-se a desgastar, a consumir meios, a empenhar efetivo humano que está para lá de muito deficitário...

A Ucrânia está a "pagar" muito cara a vitória na frente leste.

Enquanto isso, numa estratégia de desgaste continuado, a Rússia, através de drones e mísseis (isto é, sem empenhar meios humanos e de infantaria, cavalaria e aéreos significativos), mantém a pressão sobre o centro da Ucrânia, em especial Kiev e, a ocidente, em Odessa.

Tenho muito receio de que tudo isto seja uma manobra muito bem orquestrada por Putin para desgastar as forças ucranianas, fazendo com que "desviem" grande parte do efetivo para leste (de modo a manter as posições já conquistadas), para, no outono e inverno (épocas em que os russos são muito mais eficazes), desferir um golpe forte e acutilante à capital, Kiev, e ao maior porto (Odessa), isolando assim o leste do país e controlando o território, conseguindo, aí sim, uma vitória.

Não seria uma "manobra de génio" nem algo inovador: os próprios russos o fizeram na lendária Batalha de Stalingrado que, literalmente, ditou o início do fim da Alemanha nazi.

Podem argumentar que esta manobra custaria milhares, até milhões, de vidas russas, o desgaste de meios e um enorme risco diplomático.

Mas desde quando é que os dirigentes russos tiveram problemas em sacrificar o sangue dos seus para atingir a vitória?

Com o apoio explícito e declarado da China, do Irão, da Coreia do Norte e, agora, também, da Índia, alguma vez a Rússia ficará, efetivamente, com falta de meios?

E que relevância tem, neste momento, para Vladimir Putin, a sua posição no panorama diplomático que é, para além dos seus leais aliados, pura e simplesmente, inexistente?

Por isso, em rigor, a Rússia tem tudo e mais alguma coisa para estar, neste preciso momento, a perder intencionalmente batalhas para, em definitivo, ganhar a guerra.

Como digo tantas vezes: quem viver verá!