A VERDADE CONTROLADA: O PREÇO DA PREVISIBILIDADE

Vivemos tempos em que a verdade deixou de ser aquilo que se procura e passou a ser aquilo que se fabrica.
Parece um paradoxo, mas não é.
É apenas o reflexo de um mundo onde a previsibilidade é mais valiosa do que a autenticidade.
A política e a diplomacia, como estão hoje estruturadas, não têm margem para a imprevisibilidade. E é precisamente por isso que a verdade, tal como a conhecíamos, foi reformulada.
Na superfície, tudo parece funcionar como sempre.
Governos, instituições, corporações e meios de comunicação continuam a falar em verdade, em transparência, em factos.
Mas basta escavar um pouco para perceber que, mais do que nunca, esses conceitos foram esvaziados do seu sentido original.
A verdade passou a ser um produto.
Este produto é moldado, embalado e distribuído ao público conforme os interesses de quem o controla.
Não é um fenómeno novo, mas a escala e a sofisticação com que agora se manipula a percepção da verdade são inéditas. Estamos perante uma nova era, onde gerir a percepção é mais eficaz do que apresentar provas.
Num mundo onde estão em jogo milhares de milhões, não há espaço para hesitações.
A realidade bruta é caótica, imprevisível, e muitas vezes inconveniente.
A imprevisibilidade é o pior pesadelo de quem gere os destinos de países ou empresas multinacionais. Quando há tanto em jogo, o risco de deixar tudo à mercê da imparcialidade é simplesmente inaceitável.
É aqui que entram as empresas de gestão de perceção — as chamadas PM firms (Perception Firms). Estas organizações especializam-se em criar narrativas que moldam o entendimento público da realidade. Não são agências de comunicação tradicionais. São estrategas da perceção, engenheiros da opinião, mestres na arte de tornar o inverosímil aceitável.
O seu trabalho é silencioso, mas altamente eficaz. Agem nos bastidores, raramente aparecem nas notícias, mas estão por detrás de muitas das decisões e mudanças de paradigma que marcam a nossa época. Criar uma verdade conveniente tornou-se um negócio lucrativo e indispensável.
A verdade, tal como é apresentada às massas, é muitas vezes o resultado de uma estratégia cuidadosamente orquestrada. As emoções são estudadas, os medos são explorados, os desejos são manipulados. Tudo para garantir que a reação do público seja previsível e controlável.
As redes sociais, os media tradicionais e até os influencers são peças deste tabuleiro. Cada um com o seu papel, cada um com a sua função.
A viralidade substituiu a veracidade.
O impacto imediato vale mais do que a precisão. E a verdade, essa, é apenas um instrumento.
A política moderna não vive da realidade, vive da perceção.
É por isso que tantas vezes nos sentimos confusos ou desorientados — porque aquilo que nos é mostrado não coincide com aquilo que sentimos ou experienciamos.
Há um desfasamento crescente entre o mundo real e o mundo apresentado.
Este desfasamento não é acidental. É desejado. É controlado. Porque um público confuso é mais facilmente guiado. E quanto menos certezas tiver, mais dependerá das narrativas que lhe forem oferecidas.
A diplomacia também se adaptou a este novo paradigma.
Já não se trata de negociar com base em factos, mas de criar consensos em torno de versões da verdade. A verdade diplomática é maleável, mutável, feita de compromissos e conveniências.
Claro que isto não significa que todos mentem descaradamente. A manipulação da verdade é subtil, refinada. O que se omite, o que se enfatiza, a ordem dos acontecimentos, as palavras escolhidas — tudo é calculado.
Não se trata de fabricar uma mentira pura e dura, mas de construir uma verdade útil.
Esta verdade útil não é, necessariamente, falsa. Mas está desenhada para servir um propósito.
E quando o propósito muda, muda também a verdade.
É assim que se governa no século XXI.
A alta finança não é diferente.
Os mercados reagem a perceções, não a factos.
Um rumor bem colocado pode movimentar milhares de milhões. Uma narrativa bem construída pode salvar ou destruir uma empresa. A informação, quando bem gerida, é uma arma poderosa.
Neste contexto, a objetividade tornou-se um luxo. A transparência, uma ameaça. A imparcialidade, uma fraqueza. Tudo o que não se pode controlar é temido. E a verdade, na sua forma mais pura, é incontrolável.
Por isso, cria-se uma versão da verdade que seja segura. Que seja estável. Que não ameace o equilíbrio de forças. Que permita planear o futuro com base em certezas artificiais.
E os públicos?
Em muitos casos, aceitam essa verdade fabricada sem grandes resistências. Porque dá conforto. Dá sentido. Dá explicações simples para realidades complexas. Dá ordem ao caos.
Viver num mundo de perceções controladas tem vantagens evidentes para quem está no poder. Permite antecipar comportamentos, modelar reações, evitar surpresas. Mas tem um custo.
Esse custo é a erosão da confiança.
Quando tudo parece encenado, mesmo as verdades mais evidentes são postas em causa. A dúvida instala-se. O cinismo cresce. E as instituições perdem a sua autoridade moral.
Há também um impacto profundo na vida individual.
Se tudo é manipulável, o que é que realmente sabemos? Em que é que podemos confiar? Como podemos tomar decisões conscientes num mar de versões concorrentes da realidade?
A longo prazo, esta desconfiança mina os alicerces da convivência social. Porque a confiança é o cimento da sociedade. Sem ela, tudo começa a ruir.
Há um momento em que a eficácia da gestão da perceção começa a ser contraproducente.
Quando as versões da verdade se tornam demasiado divergentes da experiência real das pessoas, a dissonância torna-se insuportável.
É nesse momento que surgem os populismos, as teorias da conspiração, as radicalizações.
Porque as pessoas procuram desesperadamente uma verdade alternativa que faça sentido.
Mesmo que essa verdade seja ainda mais manipulada.
O vazio deixado pela verdade real é preenchido por construções simbólicas. Por mitos modernos. Por heróis e vilões inventados. Tudo em busca de sentido.
A verdade deixou de ser um ponto de partida para ser um instrumento de poder.
Já não se procura o que é, mas o que convém que seja. Já não se baseiam decisões na realidade, mas na utilidade das versões construídas.
Mas até quando poderá este sistema sustentar-se?
A verdade real, por mais reprimida que seja, tende a reaparecer. Nem que seja sob a forma de catástrofe, de crise, de colapso.
As PM firms sabem disso. Por isso estão sempre um passo à frente. Preparam novas versões, novas narrativas, novos enquadramentos. Mas a tensão é constante. A margem de erro, cada vez menor.
Por mais eficaz que seja a gestão da perceção, há sempre um fator humano incontrolável: a curiosidade. A rebeldia. A vontade de ver com os próprios olhos. E isso, nenhuma firma pode eliminar completamente.
O desafio, no futuro, será equilibrar esta necessidade de previsibilidade com um mínimo de verdade autêntica. Porque sem ela, tudo o resto se torna ilusório.
Precisamos de verdade, não como instrumento, mas como fundação.
Porque só a verdade nos permite crescer, aprender, evoluir.
Só a verdade nos permite confiar.
E confiar é o primeiro passo para viver em comunidade. Sem isso, resta apenas a ilusão. E a ilusão, por mais sofisticada que seja, é sempre frágil.
Talvez tenha chegado o tempo de resgatar a verdade da sua prisão estratégica.
De a reencontrar como valor e não como ferramenta. De a recuperar como ponto de partida e não como produto final.
Porque no fim de tudo, a verdade — por mais imprevisível que seja — continua a ser o único caminho que nos pode devolver a dignidade perdida.
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