A NOVA DITADURA
Há algum tempo que tenho vindo a refletir sobre uma questão em particular, e essa reflexão começou porque a sinto os seus efeitos, todos os dias.
Como sabem, antes de mais e primeiro que tudo, sou um comunicador.
Comunico nestes vídeos, nos textos que escrevo, nas aulas que dou.
Comunicações que, algumas, alcançam centenas, mesmo milhares de pessoas.
E, nos últimos tempos, tenho vindo a sentir que alguém me anda constantemente a censurar, e esse alguém sou eu próprio.
E isto é muito, mas mesmo muito preocupante.
A cultura do cancelamento tem-se estabelecido como um fenómeno marcante na era contemporânea, moldando as interações sociais e redefinindo os limites da liberdade de expressão.
Este fenómeno, caracterizado pela rápida rejeição e ostracismo de indivíduos ou grupos devido a ações ou declarações consideradas ofensivas, tem gerado debates acalorados sobre os limites da liberdade individual e os perigos da auto-imposição da censura.
A cultura do cancelamento é tão poderosa ao ponto de sermos nós mesmos os censores das nossas ações e palavras, transformando-nos nos nossos próprios tiranos.
A cultura do cancelamento surgiu como uma resposta às mudanças na dinâmica da comunicação, impulsionada pelo advento das redes sociais e pela crescente sensibilidade às questões sociais.
As plataformas digitais proporcionaram um espaço para vozes diversas, mas também deram origem a um fenómeno em que qualquer deslize pode resultar em consequências devastadoras para a reputação e a carreira de uma pessoa.
A capacidade de expor rapidamente comportamentos considerados inadequados tornou-se uma ferramenta poderosa nas mãos dos autoproclamados e autonomeados defensores da justiça social.
Contudo, essa mesma ferramenta também gerou um ambiente em que a autocensura torna-se uma estratégia de autopreservação, levando-nos a questionar até que ponto estamos dispostos a arriscar a nossa aceitação social em prol da expressão genuína de nossas opiniões.
A censura, tradicionalmente associada à intervenção externa e ao controle governamental de Estados ditatoriais e despostas, assume uma nova forma quando interiorizada e personalizada.
Ao tornarmo-nos conscientes da vigilância virtual constante e das potenciais repercussões sociais, começamos a moldar as nossas palavras e ações de acordo com as expectativas da sociedade.
Nesse sentido, a autoimposição da censura torna-se uma ferramenta de conformidade, na qual cada indivíduo se torna um censor de si mesmo.
A psicologia por trás dessa autocensura revela uma interação complexa entre o medo do ostracismo social e a necessidade humana fundamental de pertença a um grupo.
Afinal, como dizia Aristóteles, somos seres sociais e só em sociedade somos, em pleno, humanos, isto é, cidadãos, membros efetivos da Polis.
O receio de ser cancelado muitas vezes leva à supressão de opiniões discordantes, mesmo quando (e em especial) essas opiniões podem enriquecer o debate público.
Essa dinâmica sugere que, embora a cultura do cancelamento possa ter começado como uma resposta coletiva à injustiça percebida, ela evoluiu para um mecanismo de controle interno, onde cada indivíduo se torna um vigilante das suas próprias palavras e ações.
Assim, a liberdade de expressão, um princípio fundamental em sociedades democráticas, encontra-se num paradoxo na era da cultura do cancelamento.
Embora a capacidade de expressar livremente opiniões seja uma pedra angular da democracia, a ameaça constante de cancelamento cria uma atmosfera em que a liberdade de expressão é condicionada à conformidade com as normas sociais predominantes.
A ideia de que não há pior censura do que aquela que impomos a nós mesmos reflete o dilema enfrentado por muitos indivíduos que desejam expressar as suas opiniões, mas temem as consequências sociais.
O silêncio tornou-se numa defesa, a concordância numa obrigação, enquanto a diversidade de opinião passou a ser uma anomalia, a discordância passou a ser uma ofensa e a discussão, o debate, a dialéctica, bases das democracias, passou a ser um jogo de alto risco, em que qualquer um pode ser "cancelado" nas redes sociais, sem direito à defesa, sem direito à prova, sem direito ao contraditório, sem direito à presunção da inocência.
É-se julgado e condenado em "praça pública" sem direito a recurso e apelo e a condenação é perpétua porque, uma vez no ciberespaço é para sempre.
A autocensura, nesse contexto, não é apenas uma forma de evitar represálias externas, mas também uma maneira de evitar o conflito interno e a alienação social.
Aqui, as plataformas digitais desempenham um papel crucial na perpetuação da cultura do cancelamento.
A rapidez com que as informações circulam nessas plataformas contribui para a amplificação de escândalos e a disseminação rápida de julgamentos públicos, mesmo quando não fundamentados, mesmo quando manipulados.
No entanto, a responsabilidade das plataformas vai além da simples facilitação desse fenómeno.
A implementação de algoritmos que favorecem conteúdos polarizadores, de rotura e fragrantes, independentemente da sua coerência e validade, e a falta de regulamentação efetiva em relação ao cancelamento indiscriminado levantam questões sobre o papel das plataformas na promoção de um ambiente saudável de debate, de discussão, de partilha de opiniões e pontos de vista.
Ao não abordarem adequadamente o fenômeno da cultura do cancelamento, as plataformas digitais contribuem para a criação de uma esfera pública virtual onde a autocensura se torna a norma.
Desta forma, a cultura do cancelamento levanta desafios significativos para a saúde das democracias.
A diversidade de opiniões, um elemento vital para o funcionamento eficaz de sistemas democráticos, está em risco quando os indivíduos se sentem compelidos a censurar as suas próprias perspetiva por medo de represálias sociais.
O pluralismo, que deveria ser uma força impulsionadora para o progresso, é prejudicado quando a conformidade prevalece sobre a autenticidade, quando a mediocridade prevalece sobre o mérito, quando a vitalização prevalece sobre a resiliência, quando quem nada tem com que contribuir acusa de abuso, de agressão e de ofensa aqueles que querem gerar as rupturas em que sempre se baseia a construção do futuro.
Além disso, a polarização política e social, exacerbada pela cultura do cancelamento, cria um ambiente em que o diálogo construtivo se torna cada vez mais difícil e perigoso.
A tendência de rotular e cancelar aqueles que discordam de determinadas posições contribui para a fragmentação da sociedade em grupos cada vez mais isolados, hostis e radicais.
Também aqui se aplica um paradoxo:
por regra o radicalismo é muito mais empenhado, ativo e expressivo que a moderação.
Logo, grupos radicais, embora em minoria, tem uma capacidade enorme de impor a sua vontade às maiorias moderadas que não se querem envolver em disputas alarves em praça pública ou em discussões estridentes nas redes sociais em que não se aplicam os mínimos princípios de civilidade, educação, bom-senso e mesmo factualidade cientifica e histórica.
Um pouco por cobardia, um pouco por recato, as maiorias moderadas acabam por ceder e, por desistência, conferir o protagonismo, a decisão e o poder a pequenos grupos radicais, que fazendo uso das redes sociais e dos órgãos de comunicação social sensacionalistas, acabam por controlar e ditar toda a narrativa contemporânea.
Impõe a sua vontade quem mais grita e não quem mais pensa, quem mais extrema e não quem tenta alcançar consensos, quem mais exclui e não quem mais inclui.
Porque combater a discriminação é incluir as minorias na maioria preservando a sua identidade, não é, como se faz, vincar a diferença, radicalizar a exceção, impor a minoria a uma maioria conformada, cada vez mais apática e cada vez mais medrosa de ser excluída, ostracizada, cancelada por bandos movidos a ódio e alimentados a radicalismo.
Diante dos desafios apresentados pela cultura do cancelamento, é crucial encontrar soluções que promovam uma esfera pública mais saudável e inclusiva.
A educação para a cidadania e comunicação e a literacia digital emergem como ferramentas fundamentais para educar os indivíduos a discernir entre opiniões legítimas e discursos prejudiciais e radicais.
Além disso, a promoção do debate aberto e do respeito pelas diferenças pode ajudar a dissipar a atmosfera de cancelamento que permeia as interações online e offline.
As plataformas digitais também desempenham um papel central na mitigação da cultura do cancelamento.
A implementação de políticas transparentes, algoritmos imparciais e mecanismos eficazes de revisão pode contribuir para a construção de ambientes online mais inclusivos e respeitosos.
A cultura do cancelamento, embora tenha origem como uma resposta à necessidade de responsabilização e justiça social, transformou-se num fenómeno que molda o modo como nos expressamos e interagimos.
A autoimposição da censura torna-nos nos nossos próprios tiranos, limitando a liberdade de expressão e comprometendo os princípios democráticos.
Cito, muitas vezes, uma frase de Voltaire, em que ele afirma "posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres!".
Nunca, como agora, é urgente recuperar as palavras do pensador francês.
Porque a diversidade está no debate, a inclusão está na partilha de conhecimento e de ideias, a integração está na exposição de opiniões e visões.
Nunca se consegui a diversidade, a integração e a inclusão pelo silêncio, pela proibição, pela censura, pelo cancelamento.
Por esses mecanismos só se consegue a ditadura, a tirania e o medo.
É imperativo reconhecer os desafios que a cultura do cancelamento apresenta para a sociedade e procurar soluções que equilibrem a necessidade de responsabilidade com a importância da diversidade de opiniões.
Somente assim poderemos construir uma opinião pública onde a autenticidade e o respeito pelas diferenças sejam valorizados, e onde não sejamos mais os nossos próprios censores, mas sim defensores de um debate construtivo e enriquecedor.
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