A MORTE DA MORTE: as primeiras impressões da Missão Humanitária na Turquia
A viagem começa hoje (06/03/2023).
Primeiro Porto para Istambul, depois até Adara, ambas de avião, de até Hadaya será de autocarro.
Aí está a zona mais afetada pelo sismo de 6 de Fevereiro de 2023.
Vou.
E vou de coração e olhos abertos para sorver toda esta experiência, única, que passará como um relâmpago mas em que, cada hora, valerá um século, como o costume.
Tentar entender o que se passa; de facto, o que estas pessoas precisam em termos de formação para começar, agora que se trataram os feridos e se enterraram os mortos, a muito lenta mas tão necessária reconstrução.
Será, por certo, uma experiencia muito enriquecedora mas, espero que sirva, fundamentalmente, para ajudar, para atenuar, um pouco que seja, o sofrimento desta gente, para que seja menos sofrido.
Como disse os mortos estão enterrados, os feridos estão a ser tratados e agora cabe-nos iniciar o lento mas tão necessário processo da reconstrução.
Mas uma reconstrução a todos os níveis, desde as habitações, que terão que ter outras condições, até à indústria, ao comercio.
Temos, também, por muito que nos doa, de encarar que as Catástrofes como estas, são fases de mutação, de transformação, mesmo de progresso, momentos em que podemos fazer melhor e corrigir alguns erros do passado que, inevitável e humanamente, foram cometidos.
Por isso esta necessidade de avaliar, de planear, de nos prepararmos, e, fundamentalmente, preparar, formar e instruir a população local, para que tudo corra o melhor possível, para que não haja mais sofrimento.
Porque depois de tudo isto, há o sofrimento silencioso, se mais não for o sofrimento de ter sobrevivido enquanto outros, famílias inteiras, partiram num capricho da natureza.
Esses não tiveram de ver a destruição daquilo que antes foi um sonho e que agora é um pesadelo.
Antes de mais e primeiro que tudo é preciso reconstruir o ânimo, a vontade de estar vivo no meio de tanta morte.
Porque a morte é tanta que chega a ser "atraente", porque é calma, é "desresponsabilizadora", enquanto a realidade é dura, sofrida, tem fome e tem a imensa tarefa de voltar a fazer tudo de novo, outra vez.
Por isso o dever imperioso, o trabalho enorme (talvez o maior) de trazer a esta gente a vontade de estar vivo para depois aí, e só aí, encontrar forças para começar a renovar, pedra a pedra, da destruição.
Mas ainda antes disso… a remoção…
Muitos não tem a consciência que antes de começar a reconstruir é necessário remover milhões de toneladas de entulho, de escombros, de ruínas.
A remoção é terrível porque, com as nossas mãos, tiramos, um a um, pedaços de sonhos desfeitos.
Partes de um carro para o qual se poupou anos, de uma boneca que se pediu no aniversário, de uma panela na qual se cozinhou para toda a família, de uma televisão que estava a ser paga a crédito…
O pesadelo saldou a dívida e aniquilou os sonhos.
E é preciso acompanhar as pessoas neste processo, estar ao lado delas, dando-lhe coragem, falando-lhes de um futuro que, nem nós sabemos, se alguma vez acontecerá.
Lá longe, muito lá longe, tempos de vida, estará a reconstrução e um monumento, algures, às vitimas de um dia 6 de Fevereiro em que em a terra foi mais destruidora que criadora.
… ou não…
Poderá acontecer a "não coragem" (a que os Técnicos de Gestão, segundo o Índice de Quarantelli definem como "extinção", que não é cobardia, mas simplesmente é não ter forças, ânimo, energia, "alma" e partir, deixar, começar do zero mas começar já, sem ter de esperar, sem ter que remover sonhos cadavéricos, sem ter que mexer num passado que já não é nada para além de sofrimento atroz.
O pesadelo, esse, que se baste, entulho eterno, como tanto que já houve, há e haverá.
E assim partem, e deixam amigos, irmãos, pais…
E é aí que a morte é mesmo morte, porque não morrem só as pessoas, mas morrem o que elas eram, o que elas representavam, os laços que as uniam, os amores, as amizades, as fraternidades, as uniões, afinal, o "nós" que o que faz, de cada um, um "eu".
Morrem as histórias que a avós contavam às netas, o ofício que o pai ensinava ao filho, a receita passada por gerações, a tradição preservada por décadas, os costumes mantidos por anos.
E é por isso que temos que estar aqui: para que haja futuro, para que a morte não vença, para que seja possível a vida e não haja mais sofrimento, mágoa, esquecimento.
Porque o esquecimento é quando tudo morre, até a própria morte!