A ILUSÃO DA ESTABILIDADE: PORQUE AS MAIORIAS ABSOLUTAS SÃO UM PERIGO PARA A DEMOCRACIA

Há uma ideia que se tornou quase dogma nas democracias ocidentais — e em particular na europeia — de que só há verdadeira estabilidade política quando um governo assenta numa maioria absoluta parlamentar.
Este pressuposto tornou-se quase um reflexo condicionado: eleições são ganhas ou perdidas com base na possibilidade de alcançar essa mítica maioria.
Em alguns sistemas, como o alemão, essa lógica está até formalmente inscrita no desenho institucional.
Mas será mesmo esse o caminho certo?
Será que esta obsessão pela maioria absoluta não está, pelo contrário, a pôr em causa a vitalidade da própria democracia?
Confesso que olho para esta tendência com preocupação.
A facilidade com que se confunde estabilidade com ausência de oposição efectiva ou com o apagar da diversidade política é sintomática de um pensamento simplista e perigoso.
Porque a verdade é que maiorias absolutas tornam o acto de governar mais fácil, sim, mas também mais preguiçoso e menos escrutinado.
Um governo com maioria absoluta não precisa de negociar, não precisa de ouvir verdadeiramente.
Pode aprovar orçamentos, diplomas, nomeações e reformas sem grande contestação.
Os parlamentos tornam-se câmaras de eco da vontade do executivo e a oposição reduz-se a um papel quase decorativo.
O debate perde profundidade. A fiscalização perde eficácia. A democracia perde substância.
Isto não significa que todos os governos de maioria absoluta sejam, por definição, maus ou autoritários.
Mas é inegável que esse poder concentrado num só partido ou coligação, por muito legitimado que seja pelo voto, tende a esvaziar os mecanismos que tornam a democracia verdadeiramente viva: o confronto de ideias, o compromisso, a negociação, a escuta mútua.
As maiorias absolutas, paradoxalmente, acabam por trair a própria essência da democracia.
Ao contrário do que se pensa, não são um sinal de saúde democrática, mas sim o prenúncio de um modelo de poder fechado, pouco permeável à diversidade e à crítica.
Um modelo onde a oposição existe, mas não conta. Onde o pluralismo é tolerado, mas não praticado.
As maiorias absolutas são, em suma, ditaduras com prazo de validade, normalmente longo porque utilizam os seus próprios meios indiscriminadamente e sem muito controlo para se perpetuarem.
Prova disso é que não é raro, muito antes pelo contrário, de maiorias absolutas "caírem" por casos de abuso de poder, tráfico de influências, corrupção, etc..
A democracia — a verdadeira, a que se alimenta da participação de todos — precisa de contradição. Precisa de tensão criativa. Precisa de oposição com força e voz, e de governos obrigados a justificar cada decisão, cada passo, cada proposta.
Isso obriga ao diálogo, sim. Dá trabalho, sem dúvida. Mas é esse o preço da liberdade e da representação.
Nos últimos anos, temos assistido a uma inversão preocupante: em vez de se valorizar a arte do compromisso, glorifica-se a estabilidade como se fosse um fim em si mesmo.
E isso é perigoso!
Porque estabilidade sem pluralismo é apenas um nome bonito para o imobilismo. Ou pior, para a autocracia disfarçada.
É preciso dizê-lo com clareza: a democracia não é um sistema para facilitar a governação.
É, antes de mais, um sistema para garantir que o poder é sempre relativo, sempre contestável, sempre escrutinado.
E isso só acontece quando os governos dependem do apoio de outros para governar.
Na verdade, a história está cheia de exemplos que provam que a estabilidade não depende necessariamente de uma maioria absoluta.
Governos minoritários, em contextos de maturidade política, conseguiram resultados notáveis. Porque foram obrigados a construir pontes. A dialogar com adversários. A justificar cada linha do seu programa. A respeitar a diversidade que o povo expressa nas urnas.
Claro que isso exige dos partidos um grau de responsabilidade elevado. Obriga-os a deixar de pensar em termos de tudo ou nada. A preferir convergências possíveis a confrontos estéreis. A perceber que servir o país é mais importante do que vencer o adversário.
Também os eleitores têm aqui uma responsabilidade.
Ao alimentarem a ideia de que a maioria absoluta é a única forma de garantir estabilidade, acabam por fragilizar a própria democracia que dizem querer defender. Porque dão poder excessivo a uma só força e retiram relevância a todas as outras.
Esta cultura da maioria absoluta como sinónimo de sucesso é, em última análise, um sinal de fraqueza democrática. É o medo do conflito político. É a recusa de aceitar que a diversidade faz parte da sociedade e deve, por isso, estar representada no poder.
Não é a facilidade que fortalece a democracia, mas sim a exigência.
Não é o unanimismo que a legitima, mas sim o pluralismo.
Não é a ausência de oposição que a enobrece, mas sim a sua capacidade de incluir e de se deixar desafiar.
O verdadeiro teste da maturidade democrática está na capacidade de governar com outros, mesmo com os que pensam diferente. Está em encontrar soluções comuns num mundo cada vez mais fragmentado. Está em assumir que o desacordo não é um obstáculo, mas uma riqueza.
A ilusão da maioria absoluta como panaceia para todos os males precisa de ser desmontada.
Porque, na verdade, essa maioria absoluta é muitas vezes a porta aberta para os abusos, para a arrogância e para a desconexão com a realidade.
Governar com maioria absoluta é fácil!
Governar com uma maioria relativa, procurando consensos e mantendo vivo o diálogo democrático, é difícil.
Mas é isso que distingue um regime verdadeiramente democrático de uma mera fachada institucional.
Devemos, por isso, exigir dos nossos representantes mais coragem democrática. Coragem para negociar. Coragem para ouvir. Coragem para ceder quando for preciso. Coragem para não se esconderem atrás do conforto de uma maioria absoluta.
É tempo de recuperar a dignidade do parlamento como espaço de construção colectiva, e não como mero carimbo de decisões já tomadas.
É tempo de dar voz à oposição, não por caridade, mas por convicção democrática.
A estabilidade política não se mede apenas pela duração dos governos, mas sobretudo pela qualidade da sua acção, pela sua capacidade de gerar consensos duradouros, pela solidez ética das suas decisões.
E, sim, já vimos maiorias absolutas ruírem em estrondos vergonhosos, e maiorias relativas governarem com eficácia e sensatez até ao fim das legislaturas.
A estabilidade não está no número de cadeiras ocupadas, mas na maturidade do sistema político.
Por isso, em vez de continuar a pedir maiorias absolutas como se fossem varinhas mágicas, devíamos estar a exigir maturidade política. Capacidade de compromisso. Visão de futuro. E respeito pelas instituições.
A democracia, para ser viva, tem de ser difícil. Tem de obrigar a escutar o outro lado. Tem de criar espaço para o desacordo. Tem de acolher a diferença como sinal de força, e não como obstáculo à governação.
A solução para os nossos problemas políticos não está em concentrar o poder, mas em distribuí-lo com inteligência e responsabilidade. Está em apostar em governos dialogantes, em parlamentos activos, em cidadãos exigentes.
Em última análise, a democracia não é um exercício de força, mas de equilíbrio. Não é um palco para maiorias esmagadoras, mas um espaço de convivência entre sensibilidades diversas.
E isso só se constrói com trabalho, paciência e, acima de tudo, respeito pela pluralidade.
Se queremos uma democracia sólida, madura e realmente representativa, temos de abandonar esta ilusão cómoda da maioria absoluta.
Porque a estabilidade verdadeira nasce do compromisso, não do monopólio.
E esse compromisso começa quando todos os actores políticos — partidos, eleitores, instituições — se dispõem a dialogar, a ceder, a colaborar.
Não por fraqueza, mas por força. Não por falta de alternativas, mas por visão.
Está nas nossas mãos romper com este paradigma preguiçoso.
Está nas nossas mãos exigir mais da democracia.
Porque ela só nos dá aquilo que estivermos dispostos a construir em conjunto.
E maiorias absolutas, na maioria dos casos, não constroem. Impõem.