A FORÇA DE PUTIN!

12-03-2024


Uma questão muito pertinente e que pouca gente faz é, afinal, se Vladimir Putin tem ou não poder, mas o poder efetivo, isto é, se o seu mandato está sustentado num apoio popular maioritário e não só pelas principais instituições do Estado.

O Ocidente, que desde sempre padeceu da "síndrome do conto de fadas" em que tem de haver, sempre, um herói perfeito e uma personagem malévola detentora de todos os defeitos e pecados, descreve a situação na Rússia como gostava que ela fosse: um tirano malévolo e impiedoso que oprime o seu povo, povo esse que, na primeira oportunidade, se revoltará e conquistará a liberdade, punindo severamente os vis e malévolos opressores! 

Putin é o lobo mau, o povo russo o capuchinho vermelho e o ocidente, por exclusão de partes, deve ser a avozinha, com os Estados Unidos, como sempre, a ser (ou a querer muito ser), o justiceiro caçador.

Mas será que é mesmo assim?

O Major-Genereal Filipe Arnaut Moreira, no seu brilhante livro "O domínio do Poder", que vos aconselho vivamente, tem muitas frases que me marcaram quando li o livro há poucos meses.

Uma dessas frases afirma "O Ocidente não compreende a Rússia e esta incompreensão é recíproca."

Isto explica, em muito, porque a esmagadora maioria do público ocidental não entende Putin e, convenhamos, que Putin, também, não entende lá muito bem os seus homólogos ocidentais, embora os saiba manipular como ninguém.

Para entender se Putin, tem, de facto, o apoio popular é necessário entender os russos e para entender os russos, antes de mais e primeiro que tudo, é necessário entender a Rússia.

A Rússia é o maior país do mundo, com mais de 17 milhões de km2 de área. 

No entanto tem uma característica que a torna única: ao contrária de outros grandes países como a China, a Índia e o Brasil, a Rússia é muito "longitudinal", sendo toda a sua imensidão expandida em muita longitude (mais de 12 fusos horários), mas em termos de latitude é muito limitada. 

Este aspeto reflete-se principalmente no clima que, em geral, é muito parecido por todo o território.

 E, no caso da Rússia isso não é bom. 

O clima é muito inóspito, com invernos muito rigorosos, frios e longos e verões amenos, mas húmidos. 

A esmagadora maioria do território russo no inverno é uma desolação fria e gelada e no verão é uma imensidão de tundra e pântanos infestada por mosquitos.

Esta circunstância além de tornar a Rússia um ambiente muito agreste para se viver, torna, por exemplo, a sua agricultura muito pobre e limitada. Tirar seja o que for desta terra com este clima é muito difícil e penoso. 

Por isso, ao longo de toda a sua história a Rússia cobiçou tanto a Ucrânia como a Geórgia, pois estes territórios são verdadeiras potencias agrícolas capazes de dar à Rússia o que ela nunca teve: comida. 

Nos tempos da União Soviética até se chamava à Ucrânia "o celeiro da União".

Este clima inóspito aliado à imensidão do território explica que, embora a Rússia seja o maior país do mundo em área, ocupa a posição 209 em termos de habitantes, tendo uma densidade populacional minúscula de 8,3 hab./km² (Portugal, para terem um ponto de comparação, tem 112,1 hab./km², quase 12 vezes mais). 

Tendo aproximadamente 145 milhões de habitantes e sendo, até, o 9º país mais populoso do mundo, a relação entre população e espaço é tão drástica que torna a Rússia uma imensidão deserta, fria e inabitada, com a população muito concentrada nos centros urbanos com as zonas rurais ponteadas por pequenos aglomerados populacionais, muito pobres, separados uns dos outros por centenas de quilómetros.

Estas circunstâncias geográficas, climatéricas e demográficas são basilares e fundamentais para entendermos a mentalidade do povo russo.

Afastados de tudo e de todos (embora faça fronteira com 14 países), tudo na Rússia fica a milhares de quilómetros e horas e horas de viagem de qualquer coisa. 

As províncias têm a dimensão de países e os transportes são muito difíceis se mais não for devido ao clima, ao terreno e, também, à histórica e continua decadência dos serviços públicos russos.

Uma estudo da OECD de 2018 indicava que 78% dos russos nunca tinham saído da sua província e que 81% nunca tinham tido contacto com alguém que não fosse russo.

Isto molda o caracter e a alma de um povo: isolados, sofridos, melancólicos, desconfiados, sem acesso a outras visões, a outros pontos de vista, a outras experiências, só conhecem o que seu olhar alcança, aguerridos em defender o pouco que tem e sem grandes esperanças no futuro ou em qualquer tipo de vivência minimamente feliz.

E quem não tem nada contenta-se com muito pouco.

Depois há a história da Rússia que vou tentar resumir de um modo muito breve, logo muito superficial e até simplista.

A Rússia, como realidade política, só existe desde 1547, quando o grão-duque Ivã IV, unificou os vários principados e grã-ducados da região. Essa unificação foi feita à custa de muita barbárie, sangue e impiedade, ao ponto de Ivan ter ficado para a história com o cognome de "O Terrível". 

E esse método de governação e submissão não se modificou ao longo dos séculos. 

Até mesmo os Czares mais progressistas, como Pedro I e Catarina II, conhecidos, ambos, pelo cognome de "Grandes", eram impiedosos, recorrendo ao medo para consolidar e manter o seu poder. 

Pedro I, o Grande, o mesmo que tentou "ocidentalizar" a Rússia (e o primeiro a invadir a Crimeia), foi o mesmo que instituiu a primeira polícia política que era, também, a mais impiedosa do seu tempo (e mesmo de todos os tempos), conhecida por Streletsky Prikaz, que foi o início de uma longa história que ainda hoje continua na "figura" do FSB e do SVR, ou do KGB como ainda teimamos em lhe chamar, pois, de facto, o continua a ser.

Mas, durante todo o período do império dos Czares a Rússia pouco mudou. 

Uma nobreza, radicada em Moscovo e Sampetersburgo, riquíssima e altamente privilegiada que obtinha essa riqueza com a exploração barbara e desumana da restante população que vivia em condições deploráveis e de absoluta penúria como tão bem descreve as obras de Fiódor Dostoiévski e de Liev Tolstói. 

A descrição da Rússia rural é friamente feita por Dostoiévski na sua obra, mas, em especial em 3 livros: Recordações da Casa dos Mortos, Gente Pobre e Noites Brancas, talvez a descrição mais crua, exata e fria das condições sub-humanas em que vivia a esmagadora maioria da população russa.

A situação chegou a um ponto tão extremo que deu origem a algo que, para o povo russo e a sua idiossincrasia é um verdadeiro contra-senso: uma revolução popular.

Quando Marx e Engels idealizaram o comunismo e sonharam com a sua concretização real, sempre afirmaram que este teria a sua expansão nas sociedades urbanas industriais do ocidente, que, na época, estavam em plena revolução industrial. 

Em Inglaterra, França e Alemanha os novos trabalhadores fabris labutavam 16 horas por dia, sem dia de descanso, em condições de trabalho desumanas, com rapazes de 6 e 7 anos a escavarem minas de carvão e meninas de 7 anos a cozer sapatos até as mãos estarem em sangue. 

E tudo isto por uma côdea de pão e um farrapo para se cobrir.

Era, segundo os ideólogos comunistas, o terreno fértil para eclodir a revolução socialista.

Mas esqueceram-se da penúria dos campos, da tirania dos senhores feudais da Rússia e foi pela mão de Lenine que o regime Czarista caiu e surgiu o que viria a ser a União Soviética.

E os russos sonharam que aquilo que era cantado na "Internacional", seria mesmo verdade: a terra a quem a trabalha, o rendimento a quem o gera, uma nação de produtores, do povo pelo povo, uma terra sem amos!

E o que tiveram?

Todos sabemos a história.

Primeiro o Leninismo com as suas purgas e guerra cívil entre os Bolcheviques brancos e vermelhos, depois o período negro do Estalinismo marcado pelo "Terror Vermelho", pelo Holodomor e  pela participação na Segunda Guerra Mundial. 

Só no "Terror Vermelho" foram mortas mais de 600.000 pessoas e milhões foram deportadas, presas nos terríveis Gulags, torturadas nas caves de Lubianka. 

No Holodomor, segundo as Nações Unidas, morreram de fome entre 7 a 10 milhões de pessoas e isto somente num período de 3 anos... 

Na Segunda Guerra Mundial morreram 26,6 milhões de pessoas da Rússia e de outras repúblicas soviéticas, ou seja, mais de metade de todas as mortes da II Guerra Mundial.

A coletivação da agricultura e nacionalização da indústria e do comercio pelo Estado Soviético criou desigualdades que nem no tempo dos czares existia. 

A Rússia, com os sovietes, não melhorou, antes pelo contrário e o sonho do comunismo desvaneceu-se para a martirizada população russa. 

Se antes se conseguia ficar com parte do que se produzia, com os sovietes tudo era do Estado, mas esse Estado só era benévolo para as elites do Politburgo do Kremlin, distribuindo, ao povo, pouco mais que uma fatia de pão, um pedaço de arengue e um pickle de pepino.

E, com períodos melhores, outros piores, outros terríveis, assim se passaram 80 anos de opressão do povo russo pelo regime soviético.

Mas nem os iluminados sovietes fogem ao destino certo de todos os impérios: o fim.

E a União Soviética desmoronou-se quase de um dia para outro.

Em 1992 é dissolvida a URSS e os russos voltam a sonhar. 

E o sonho agora dava provas que podia ser real pois era vivido por milhões na Europa ocidental e nos Estados Unidos. Os russos viam, maravilhados, pela televisão, os carros, as casas, as famílias felizes, as cidades pulsantes de luxo, bem-estar e liberdade.

Mas a Rússia não estava preparada para, de um modo tão drástico, tão rápido e tão descontrolado, passar de uma economia comunista para uma economia de mercado. 

Não havia quadros técnicos, não havia conhecimento, não havia experiência, não havia instituições reguladoras, em rigor, só havia duas coisas: ganância e instinto de sobrevivência.

A economia desmourou-se.

Boris Iéltsin, Presidente da nova Federação Russa, entendia mais de vodka do que gestão política e, literalmente, o poder caiu nas ruas. 

Privatizações selvagens, corrupção generalizada, instituições comprometidas desde o topo à base, a Rússia começou a ser dominada pelo Crime Organizado e a lei passou a ser o suborno, a extorsão, o assassinato. 

No período entre 1993 e 2001 foram assassinadas, só em Moscovo, mais de 80.000 pessoas, atribuindo-se grande parte desses homicídios ao crime organizado.

E se Estado Comunista ainda dava a fatia de pão, o arengue e o pepino, os oligarcas nem isso, ameaçando com a morte e a vingança quem ousa-se desobedecer-lhe.

A ideologia da ganância provou ser pior que a ganância da ideologia.

Mais uma vez a Rússia continuava na mesma, mudavam os indivíduos, não a realidade do povo, que de mudança em mudança, ficava cada vez mais pobre, mais oprimido, mais sem esperança.

Foi, no meio deste caos que Iéltsin chamou a Moscovo um rapaz que em Sampetersburgo tinha conseguido, não se sabia bem como (nós sabemos mas isso é outra história), alguma ordem, alguma estabilidade e alguma confiança.

O seu nome: Vladimir Pútin.

Frio, calculista, impiedoso, sanguinário, mas, igualmente inteligente, perspicaz, astuto e um manipulador nato, um estratega excecional. 

O melhor "produto" saído das academias do KGB.

E o que fez no Norte Putin fez no Kremlin. 

Recorrendo ao ardil, à vingança, à traição, ao medo, à chantagem, isto é, não olhando a meios Putin alcançou o seu fim.

E que fim foi esse?

Alguma ordem, alguma estabilidade, alguma esperança, alguma base de subsistência, alguma garantia de sobrevivência.

Notem que o que Putin conseguiu para o povo russo é completamente inaceitável para qualquer um de nós, cidadãos dos países ocidentais.

Os rendimentos são baixíssimos, a corrupção continua generalizada, as desigualdades sociais escandalosas e a isso acrescenta-se a ausência dos mais básicos direitos, liberdades e garantias, com o Estado completamente controlado pelos FSB, o antigo KGB, com a liberdade de expressão e associação muito controladas e a oposição política completamente dizimada por assassinatos seletivos.

Tudo isso, para nós, é completamente condenável, inaceitável, inconcebível.

Mas nós não somos russos, não vivemos na Rússia, não pensamos como russos, não herdamos a história russa.

E por muito que nos custe aceitar o regime russo, Vladimir Putin é o melhor que aquele povo teve desde que são Rússia.

E a quem nada tem e sempre sofreu, a mais miserável migalha e o mais ténue conforto assumem-se como um paraíso.

Por isso Putin, é, de facto, popular entre o povo russo.

Não estou a dizer que as eleições não são manipuladas e que as manifestações de apoio não são encenadas.

Claro que são!

Se mais não for homens como Putin não deixam na mão do acaso e da vontade do povo, algo que podem facilmente controlar.

Mas o Ocidente tem de olhar para o que é a realidade e não para o que gostava que fosse a realidade.

Putin tem uma grande popularidade entre o povo russo e tem também o seu apoio para se manter no poder.

Primeiro, porque, como já disse, é o melhor que a Rússia teve desde Ivan, o Terrível, depois porque os russos não querem passar por outra alteração, por outra revolução, por outra mudança.

 Simplesmente porque sempre que isso aconteceu em 600 anos de história ficaram sempre pior do que já estavam.

Por isso o Ocidente não pode ser inocente e continuar a basear a sua ação diplomática e de relações externas em relação à Rússia e à sua liderança em utopias, idealismos e fantasias..

Putin é um ditador? É! 

Putin é um criminoso? Também! 

Putin está unicamente interessado no seu proveito e na sua manutenção no poder? É um facto!

Mas Putin também é o líder incontestado da Federação Russa, sem oposição capaz de lhe fazer frente e tem o apoio das oligarquias económicas, do crime organizado, tem controladas as Forças Armadas e domina, totalmente, os Serviços Secretos.

Para além disso, pela manipulação, mas também pela circunstância e pela história da Rússia, não duvidem, tem o apoio da maioria da população.

As pessoas que, heroica e corajosamente, aparecem nas manifestações, que denunciam os crimes do regime, que se opõe a Putin são, infelizmente, uma minoria de intelectuais esclarecidos que veem mais longe do que o duro presente.

Porque não há sonhos de liberdade, de prosperidade e de progresso quando não há vida, mas somente sobrevivência.

E o povo russo agradece, protege e apoia quem lhe permite sobreviver. 

Porque isso é muito mais do que alguma vez teve.

Desta forma o Ocidente, se quer, de facto, a estabilização das relações com a Federação Russa, se quer, de facto, o fim da guerra na Ucrânia, se quer, de facto, que a Rússia não fique, cada vez mais, sob influência chinesa tem de alterar, drasticamente, a abordagem ao Presidente Russo.

Em Realpolitik, na dura realidade, quase nunca o que devia ser é, quase nunca o ideal é o real, quase nunca o sonhado é o detido.

Por isso temos de escolher entre os ideais e o inatingível ou vontade efetiva de iniciar um diálogo que, não sendo o desejado é, sem dúvida e cada vez mais, o necessário e mesmo imperioso.

Porque o povo Russo é a maior vítima da Rússia e é vitima há demasiado tempo, com demasiado sofrimento, sangue e desesperança.


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