A EXPLICAÇÃO DO ÓBVIO, o conflito Israelo-Palestiniano e o texto do Rui Tavares
"A paz é a única batalha que vale a pena travar"
Albert Camus
Qualquer pessoas com um mínimo de experiência em docência ou em formação sabe que não há nada mais difícil do que explicar o óbvio.
Porque o óbvio é somente isso: óbvio.
Ora, após uma semana dos ataques do Hamas ao Estado de Israel andava eu às voltas com um texto em que tentava, a custo, fazer isso mesmo: explicar o óbvio.
Até que, ao ler o Expresso, deparei-me com um texto do Rui Tavares, historiador, dirigente do Livre e deputado à Assembleia da República por esse mesmo partido. Nesse texto o Rui Tavares, de um modo brilhante e conciso consegue aquilo que eu não estava a conseguir: explicar o óbvio.
Embora a sua ideologia política esteja nos antípodas da minha, o Rui Tavares tem mantido uma postura, uma coerência e uma atitude que dá uma lição de sensatez, moderação e, principalmente, de democracia a toda a esquerda.
Homens como o Rui Tavares fazem falta à esquerda, fazem falta à democracia.
Assim, e assumindo que o bom senso manda que não se invente o que já está inventado, não se crie o que já está criado e, também, não se escreva o que já está escrito, em vez de, por certo com muito menos eficácia e talento, escrever eu um texto, deixo-vos aqui o texto do Rui Tavares, absolutamente brilhante, a explicar o que qualquer cidadão dotado de um mínimo de formação cívica e o elementar conhecimento das bases dos Estados de Direito democrático, deviam saber… mas visto isso não sabem….
Boa leitura e parabéns ao Rui Tavares por um texto brilhante e por ser quem é e como é.
ONDE SE METE O “MAS”
Por Rui Tavares
É preciso começar pelas vítimas. Se nos pomos a discutir geopolítica sem perceber que é de pessoas que estamos a falar, arriscamo-nos a perder a nossa humanidade. E é preciso começar pelas vítimas, porque são as suas vozes que não se vão ouvir mais e as suas escolhas que já não podem mais ser feitas. O mínimo que podemos fazer é reafirmar que nada pode jamais justificar o assassínio, tortura e sequestro de civis inocentes e desarmados, incluindo idosos, mulheres, famílias inteiras, turistas estrangeiros, trabalhadores migrantes e aqueles de entre os mais vulneráveis aos quais nem os pretextos mais retorcidos alguma vez serviriam para atribuir qualquer culpabilidade — as crianças. Esta é uma linha inultrapassável. Uma criança não pediu para nascer israelita ou palestiniana, judia ou muçulmana, ou árabe ou cristã. Uma criança não escolheu a sua geopolítica, não tomou parte das decisões dos adultos que criaram Estados e traçaram fronteiras, não pode por definição ter “culpa” no que quer que o seu assassino decida que é a motivação do seu assassínio. Não há nenhuma razão histórica, política ou outra que possa servir ao assassino para ignorar a diferença entre o bem e o mal no ato de assassinar uma criança.
Em segundo lugar, é preciso designar e descrever os perpetradores, quem eles são e como são. O Hamas é uma organização terrorista que nem muito longinquamente tem qualquer coisa a ver com a justa causa da libertação do povo palestiniano. A própria razão de ser do Hamas é a opressão dos palestinianos, como já fazem na Faixa de Gaza, e, se o Hamas realizasse o seu sonho fanático de expulsar todos os judeus do território entre o Jordão e o Mediterrâneo, a sua causa continuaria a ser a da opressão dos palestinianos — os cristãos, as mulheres, os muçulmanos de escolas de pensamento diferentes das suas, os seculares, os não religiosos, as pessoas LGBT, todos os que se lhes opusessem. Presos por Israel, reféns do Hamas — eis a tragédia de Gaza.
Israel tem o mesmo direito a defender-se que qualquer outro Estado internacionalmente reconhecido. Não tem menos direito do que qualquer outro Estado. Não tem mais direito do que qualquer outro Estado. Como com qualquer outro Estado, essa defesa deve ser feita respeitando o direito internacional, em particular o direito humanitário, de acordo com os princípios da proporcionalidade e da necessidade, com o objetivo primordial de proteger civis ou responder a um perigo iminente, e não como forma de punição coletiva ou de anexação de território. Como qualquer Estado, tem de ser denunciado e condenado quando ultrapassa esses limites. O corte de água, comida e eletricidade a uma população civil de dois milhões numa cidade densamente povoada é igualmente crime de guerra se for a Rússia a fazê-lo na Ucrânia, a Arábia Saudita no Iémen ou Israel na Palestina.
Isto são banalidades contra a enormidade do que se está a passar. Mas se acontece ser uma banalidade a coisa correta a dizer, não se deve ir dizer a coisa errada só para ser menos banal.
Vejo que utilizei ali a palavra “mas” na última frase, pela primeira vez neste texto. Vamos então falar dessa palavra.
O “mas” é uma palavra bela; não há nada de errado com ela. Mas — lá está — é preciso saber usá-la. Se eu disser “fulano é meu amigo, mas é um assassino”, estou a usar exatamente as mesmas palavras que se eu disser “fulano é um assassino, mas é meu amigo”. E, no entanto, estou a dizer coisas muito diferentes. Basta reler em voz alta para entender o como desse “mas”. Da mesma forma, se eu disser “sicrano é meu inimigo, mas é um ser humano”, ou “sicrano é um ser humano, mas é meu inimigo”, as palavras são as mesmas mas o sentido não o é.
Pessoas que concordam com o que está antes e depois do “mas” caricaturam-se, demonizam-se, atacam-se, diabolizam-se e depois perguntam candidamente porque é que os palestinianos e os israelitas não fazem a paz.
Proponho que experimentem substituir o “mas” por um “e”.
Publicado no jornal Expresso a 13.10.2023