A DEMOCRACIA DOS MERCADOS: ENTRE A LIBERDADE E O ABISMO

04-07-2025

Vivemos tempos verdadeiramente revolucionários.

A digitalização trouxe-nos o mundo à palma da mão, e com ele, a possibilidade de cada um de nós se tornar investidor, gestor das próprias poupanças, ator num palco outrora reservado a elites financeiras.

Esta é, sem dúvida, uma das maiores mudanças económicas das últimas décadas: a democratização do acesso aos mercados financeiros.

Hoje, qualquer pessoa com um smartphone e ligação à internet pode, em poucos minutos, abrir uma conta numa aplicação de investimento e começar a comprar ações, obrigações, moedas estrangeiras, ou até contratos de futuros e opções.

Parece magia, mas é apenas o poder da tecnologia a servir a promessa da igualdade de oportunidades.

E isso, no seu princípio, é bom.

Muito bom, aliás!

Durante demasiado tempo, o mercado financeiro foi um clube fechado, habitado por especialistas e protegido por uma linguagem críptica, feita para excluir quem não pertencia ao círculo.

A literacia financeira era um privilégio, e o acesso ao investimento, um luxo.

A chegada das fintechs e das plataformas digitais rompeu essa barreira. E ao fazê-lo, cumpriu uma ambição antiga: tornar o sistema mais justo.

Porém, como tantas revoluções, também esta tem as suas sombras.

A verdade é que o facto de algo estar acessível a todos não significa que todos estejam preparados para lidar com esse algo.

E aqui está o cerne do problema!

A massificação do acesso aos mercados trouxe milhões de novos participantes, mas não garantiu que esses milhões soubessem o que estavam a fazer.

Muitos entram nos mercados como quem entra num casino: Jogam. Arriscam. Apostam no que "acham" que vai subir. Seguem dicas aleatórias nas redes sociais, influenciadores que nem sempre têm o mínimo de formação em finanças. Agem por impulso, por medo de perder uma oportunidade, por ganância, por instinto.

Esta atitude transforma o mercado num terreno volátil, instável, emocional.

Deixa de ser um espaço de racionalidade e cálculo, para se tornar, muitas vezes, num palco de histeria coletiva.

E quando são milhões a agir assim, o impacto é gigantesco!

Não estamos a falar de meia dúzia de curiosos. Estamos a falar de verdadeiros exércitos de micro investidores, cujas decisões — mesmo quando individuais são insignificantes — ganham uma força devastadora quando multiplicadas. A pressão destes pequenos investidores pode alterar cotações, provocar picos artificiais, gerar bolhas, causar pânicos.

Vimos isso em casos mediáticos como o da GameStop, onde grupos organizados de pequenos investidores fizeram tremer fundos gigantescos. O feito foi aplaudido por muitos como uma espécie de revolução popular contra Wall Street. Mas a verdade é que, em muitos casos, ninguém sabia exatamente o que estava a fazer. Era puro entusiasmo, adrenalina, efeito de manada.

E não nos enganemos: os mercados financeiros não são um jogo. São mecanismos complexos, delicados, cuja função maior não é enriquecer ninguém do dia para a noite, mas garantir o financiamento da economia real, a estabilidade das empresas, o funcionamento dos Estados. Quando desvirtuamos essa função, corremos riscos sérios.

A falta de literacia financeira é, neste contexto, um problema de segurança pública.

Um perigo silencioso que ameaça a integridade dos próprios mercados. Um pequeno investidor mal informado pode perder o que tem. Mas milhões de pequenos investidores desinformados podem provocar uma crise.

Não se trata de elitismo. Muito pelo contrário!

O que se pede não é que os mercados voltem a ser exclusivos, mas que o acesso lhes seja acompanhado de responsabilidade. Que a liberdade seja garantida, sim, mas nunca à custa da estabilidade.

Porque liberdade sem consciência é só outra forma de caos.

Assim, urge criar mecanismos de regulação e educação.

É fundamental que o acesso aos instrumentos financeiros esteja associado a provas mínimas de conhecimento. Tal como não se conduz um carro sem carta, também não se devia investir em produtos complexos sem uma base de literacia financeira.

Isso não significa impedir ninguém de investir. Significa apenas garantir que o fazem de forma consciente.

A formação financeira devia ser parte integrante do currículo escolar. E as plataformas de investimento deviam ser obrigadas a integrar tutoriais, testes de conhecimento, mecanismos de aviso.

Há que inverter a lógica atual, onde tudo é rápido, fácil, intuitivo — mas onde falta o essencial: a compreensão.

É preciso abrandar para pensar. Refletir antes de clicar. Analisar antes de investir. Só assim conseguiremos transformar o acesso digital aos mercados numa verdadeira ferramenta de empoderamento.

Não podemos continuar a romantizar a ideia do "investidor amador que bate os profissionais". Isso pode acontecer uma ou outra vez, como qualquer sorte de principiante. Mas, na maior parte das vezes, o desfecho é diferente: perdas acumuladas, frustração, desilusão. E mercados mais frágeis.

O acesso generalizado aos mercados é uma vitória da democracia económica. Mas é uma vitória incompleta se não for acompanhada da promoção da literacia financeira. Caso contrário, estamos apenas a trocar uma exclusão por outra: em vez de excluídos por não ter acesso, teremos arruinados por não saber usar esse acesso.

E a verdade é que não estamos a falar de um nicho. Estamos a falar de famílias, de jovens que investem as suas primeiras poupanças, de reformados em busca de rendimento extra.

Estas pessoas não podem ser deixadas à mercê da sorte, nem entregues a um sistema que as atrai com promessas de ganhos fáceis, mas que as abandona no momento da queda.

A tecnologia veio para ficar. E isso é ótimo. Mas deve ser usada com responsabilidade.

O mercado não pode ser um videojogo, nem uma roleta.

Precisa de ser um espaço de confiança, onde o risco é calculado, onde o investimento é informado, onde a liberdade é protegida — mas nunca confundida com irresponsabilidade.

Infelizmente, ainda há um caminho a percorrer.

Muitos dos mecanismos de proteção atuais são fracos ou inexistentes. As plataformas têm mais interesse em angariar utilizadores do que em os formar.

E o regulador, por vezes, reage tarde ou de forma tímida.

É preciso coragem política para mudar isto. E é preciso vontade social para exigir essa mudança.

Porque o que está em causa não é apenas o dinheiro de quem investe mal. É a confiança de todos num sistema que nos afeta, direta ou indiretamente.

Os mercados financeiros não vivem no éter. Alimentam-se da economia real. E a economia real somos nós: os que trabalham, produzem, consomem, investem.

Quando os mercados colapsam, ninguém fica imune.

Por isso, temos todos interesse em que eles sejam saudáveis.

Democratizar o acesso aos mercados é uma conquista do nosso tempo. Mas como qualquer conquista, exige maturidade. Exige que tratemos o investimento como o que ele é: uma ferramenta poderosa, sim, mas que deve ser usada com cuidado, como se usa um bisturi — e não como se atira um dado.

No final de contas, trata-se de equilíbrio. De encontrar o ponto em que liberdade e responsabilidade se tocam. Em que o acesso é livre, mas não ingénuo. Em que o cidadão é protagonista, mas também conhecedor. E isso começa com uma mudança de mentalidade.

Cabe-nos a todos — cidadãos, reguladores, empresas, escolas — construir esse novo paradigma. Um paradigma onde investir não seja um ato de fé cega, mas de consciência informada. Onde o saber ande de mãos dadas com o fazer. E onde o futuro dos mercados seja, de facto, um bem comum.

Porque sim, o futuro é digital. Mas deve ser, acima de tudo, humano.